Biblioteca do IACS
Biblioteca Mary Harder do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul
A história do IACS
O Instituto Adventista Cruzeiro do Sul - IACS - tem uma história fantástica. Você poderá baixar vários livros no formato digital para ler em seu computador, ou se preferir, pode ler nesta página mesmo. Você não pode deixar de ler esta história que tem marcado a vida de muitas pessoas nestes últimos 82 anos.Baixe o livro "Memorial do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul" de André M.Pasini", (15,4 MB)
Baixe o livro "Do sonho à realidade...", de Aparecida H. T. Macedo (1,38 MB)
Fotos do Museu do IACS
1999 Aparecida H. T. Macedo
Prefácio
Escrever a história do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul requer conhecimento sobre estrelas. Não as da constelação que enfeita o céu do hemisfério sul, mas estrelas vivas que fizeram, em mais de 7 décadas, uma história de fé e amor vividos numa escola. A professora Aparecida Macedo nunca estudou no IACS, mas dedicou a ele, como professora, quase toda a sua vida até agora. Poderia ter sido apenas isso que foi: uma excelente professora, e a Escola já lhe seria muito grata. Mas ela foi além. Ao começar a ver aqui e ali alguns vislumbres da história desse colégio que fora por ela adotado reciprocamente, entendeu que o seu IACS tem uma história que vale a pena ser, não apenas preservada, mas também contada a todos os jovens que desejam ser imbuídos do espírito dos pioneiros para realizarem alguma tarefa especial. Sim, ela acabou por descobrir que, muito antes de nascer na suave colina que abrigou o primeiro prédio, o IACS havia nascido no coração de um sonhador: o Pr. Abraham Classen Harder.
Colecionar e transcrever depoimentos, ler cartas e documentos, cuidar de centenas de fotografias e objetos, manter um museu histórico tudo faz parte da dedicação que a tornaram a maior conhecedora desta escola e de sua história. Ao estar dirigindo o IACS por quase dez anos, posso afirmar isto com segurança.
Agora mais um sonho: um livro. Sendo professora de literatura e reconhecida pelo bonito manuseio que faz das palavras, não seria de se esperar menos da professora Aparecida. Na verdade, a história do IACS nunca poderá ser totalmente abrangida num livro, pois ela se subdivide em centenas ou milhares de pedaços vividos por seus alunos. Mas aqui estão, pelo menos, os principais capítulos.
Milton Cézar de Souza - Diretor Geral
À guisa de Introdução
Este livrinho não é um documentário. É apenas um recordativo, uma tentativa de trazer ao conhecimento de muitos a bela
história do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul. Os fatos aqui narrados são verdadeiros e, salvo alguma exceção
mencionada, os nomes também o são.
Os fatos referentes à fundação do Colégio e aos primeiros anos de funcionamento vieram-me através de pesquisa, conversas com
os descendentes do casal Harder ( filhos e noras), com os primeiros alunos, a maioria dos quais já descansa de seus
labores, uma vez que esta pesquisa se deu ao longo de quase 20 anos. O mesmo aconteceu com os fatos subseqüentes que vão
desde o final da era Harder até inícios da década de 60. A partir daí, vivenciei-os todos.
Talvez, um ou outro fato esteja explanado aqui de maneira um tanto diferente daquela que, uma outra pessoa, tenha ouvido
falar. Acontece que muitos fatos me foram narrados de maneiras diferentes, por ex-alunos diferentes. Bem compreensível a
questão. Muitos e muitos anos separavam estes primeiros estudantes dos acontecimentos que marcaram suas vidas. Hemos de
convir que suas lembranças poderiam pregar-lhes alguma peça. Os lugares, onde se deram os fatos, também eram indicados de
modo diferente por este ou aquele. A paisagem mudou e, às vezes, ficava difícil estabelecer com exatidão o ponto onde o
fato havia ocorrido. Assim, fui tirando minhas conclusões, baseando-me naqueles depoimentos que mais coincidiam entre si.
Provavelmente, haja muitos outros fatos interessantes que não são mencionados aqui. Alguns não me chegaram ao conhecimento,
talvez. Outros... impossível narrá-los todos neste que é para ser apenas um livrinho .
A parte histórica referente à família Harder foi baseada na obra "Incertain Jouney" de. Franck e Ava C. Wall, publicada
por Review and Herald Publishing Association em 1974. Nessa obra, os autores narram a vida das primeiras famílias menonitas
que vieram da Rússia, da Alemanha e da Holanda para os Estados Unidos e que posteriormente se tornaram Adventistas do Sétimo
Dia. A parte referente à família Harder tem como título "A century of dedication" e vai da página 87 à página 98.
Sou grata a Deus que me trouxe, um dia, ( embora eu não o quisesse) para esta Casa. Não vim como aluna. Vim, já como
professora. Aprendi a amar este lugar e depois que me inteirei dos detalhes maravilhosos de sua fundação e de seus primeiros
anos, passei a amá-lo muito mais.
Índice
Primeira Parte: Os primórdios
5. Sob as ordens de um anjo...finalmente!
Segunda parte: A Escola... ontem
5. Alguns fatos pitorescos dos primeiros anos
- Papai Harder e o aluno faltoso
- Os sapatos "novos" do professor
6. Adeus, Colégio Cruzeiro do Sul!
Terceira parte: Depois da era Harder
1. Outros Tempos... outros caminhos
3. As janelas de ferro do refeitório
6. De aluno-bolsista a prefeito
11. "70 anos fazendo brilhar estrelas"
- Mensagem de amor de um pioneiro (trechos do depoimento)
Prólogo
Início da década de 30, ou últimos dias do ano da graça de 1929... Não importa o ano; não importa a década!
É noite. Já faz muito que o sol desceu lá nos confins dos montes que emolduram, de longe, as margens do rio.
O lugar? Uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Ou melhor, os arredores da cidade, mais precisamente três ou quatro quilômetros do centro da mesma. E a noite é escura neste canto da terra para aonde seguimos levados pela imaginação.
Esta é a terra dos extremos. Frio abaixo de zero no inverno, ou calor beirando os quarenta graus no verão. Quem sabe, esta é uma daquelas noites geladas, de geada brava, quando o vento minuano sopra sem dó, enregelando o incauto ou o infeliz que não se tenha agasalhado o suficiente.Esta é a terra dos extremos. Frio abaixo de zero no inverno, ou calor beirando os quarenta graus no verão. Quem sabe, esta é uma daquelas noites geladas, de geada brava, quando o vento minuano sopra sem dó, enregelando o incauto ou o infeliz que não se tenha agasalhado o suficiente.
É noite...Uma casa grande, que já experimentou melhores dias, tem ainda uma janela iluminada. Mas com um frio destes? Quem ainda estará exercendo alguma atividade? É hora de descanso. Hora de se estar aquecido sob pesadas cobertas. Então, por que uma janela iluminada? Aproximamo-nos curiosamente. Uma senhora, já não tão jovem, está assentada próxima ao fogão, cujo crepitar da lenha que queima, serve de acompanhamento para o canto que ela entoa baixinho...
" Há um rio cristalino, Onde os santos viverão..."
Aguçamos o ouvido porque só identificamos o hino pela melodia que nos é conhecida. As palavras? Não, não dá para entender. Ela inicia uma nova canção:
" Mãos ao trabalho, jovens, Vai já passando o alvor..."
Agora, nos apercebemos... A senhora está cantando em inglês! Interessante... Por vezes, ela canta um trechinho em português, depois mistura o inglês. Outra vezes, simplesmente cantarola. Por quê? Quem é essa senhora? O que faz ainda acordada nesta noite tão fria?
Disseram-nos que esta casa é uma escola. Um internato. Como? Afinal, a residência nem é tão grande. Como pode abrigar quinze ou vinte pessoas, conforme nos disseram? Isto não vem ao caso, porém. Estamos interessados em saber quem está ali, assentada à beira do fogo e o que faz a estas horas tardias, enquanto o vento assobia nos beirais de sua casa.
Nossa imaginação nos leva para dentro do aposento que se nos afigura ser cozinha, sala de jantar, escritório, biblioteca e...dormitório. Há uma cama num dos cantos do aposento. Cuidadosamente nos achegamos e alongamos o olhar para o fogão crepitante e para a senhora próxima dele. Agora podemos vê-la mais completamente. É robusta, corada, tem um ar de autoridade, mas seus olhos são bondosos.
Os cabelos estão se pintando de branco. Sempre foram claros, é certo, no entanto, agora, é o branco da vida que começa a aparecer. Engraçado... só neste momento a vemos pela vez primeira, no entanto seu rosto exprime tanta simpatia que se nos parece ser ela antiga conhecida. Alguém a quem, de coração, já queremos bem.
Ela costura. Ao seu lado, uma pilha de roupas. Neste instante, ela está a cerzir um par de meias. Carpins, como se diz por estas plagas. Meias? Carpins? Melhor seria dizer que ela tenta refazer estas peças que já não têm mais nada de sua antiga forma. Na verdade, se assemelham a restos de meias! Quem costura, contudo, não se dá por vencida. Vira aqui, ajeita ali, põe uma emenda acolá, e, aos poucos, os carpins vão tomando forma outra vez. Quando termina um par, ela o coloca ao lado e dá um suspiro profundo como a dizer:
" O A poderá usá-las por mais algum tempo . Já não ficará com os pés tão gelados enquanto trabalha ou estuda."
Terminadas as meias, ela toma outra peça. Parece uma camisa. Camisa cujo colarinho é um amontoado de fios rebentados. Ela olha, suspira e começa a tentar dar-lhe forma outra vez. Nós olhamos perplexos para a pilha que está ao seu lado e nos preocupamos. Até que horas terá ela que costurar para ajeitar esse monte de roupas, que mais parecem despojos de uma guerra?
Ela recomeça a cantar... Coloca mais lenha no fogo.. Pára o trabalho, escuta o ulular do vento. No resto da casa, o silêncio é absoluto. Barulhos... Só o vento mesmo, o crepitar da lenha e o murmúrio da voz que canta baixinho enquanto as mão trabalham agilmente.
Alguém se aproxima. Pé-ante-pé, como que indeciso. Será que entra na sala? Vai perturbar a senhora que ali está? Será bem recebido? Terá coragem de falar-lhe? Os passos param no limiar da porta intermediária. Hesitam. Não, não há coragem. Quando o dono dos passos vai recuar, já foi pressentido. Que fazer? É então que ele ouve aquela voz já tão conhecida, carregada de sotaque, mas que se faz entender perfeitamente pelo carinho e compreensão que demonstra:
" O que há B? Você quer falar comigo? Está com algum problema, meu filho?"
Meu filho? Ela disse "meu filho" ? Mas este jovem não pode ser seu filho! É completamente diferente dela! A tez, os cabelos, os olhos... mas nós ouvimos bem que ela disse "meu filho". O jovem ainda hesita. Ela insiste:
Timidamente o jovem se aproxima dela. Esfrega as mãos, um tanto nervoso. Mas, aquele olhar cheio de bondade, finalmente o impele a falar:
"Senhora Harder, eu estou com vergonha de lhe falar. É que sábado que vem eu tenho de contar a Carta Missionária na igreja e não vou poder, porque não tenho nenhuma camisa em condição de ser usada na igreja".
"Mas e as que você usa para ir à aula?"
"Só tenho duas. Assim mesmo, os colarinhos estão muito puídos. A senhora já consertou várias vezes e me disse outro dia, que agora, não daria mais para consertar."
Então ela se lembrou. Era isso mesmo. Este aluno viera para a escola, praticamente, só com a roupa do corpo. Ela lhe arranjara, de um modo ou de outro, roupas de cama, cobertas e roupas de vestir. É bem verdade, que a maioria dos que ali estavam tinham vindo nas mesmas condições...
"Tudo bem. Vai dormir sossegado, meu filho. No sábado, você terá a sua camisa nova e poderá fazer a sua parte na igreja sem nenhum problema. Durma tranqüilo!"
" Muito obrigado, mamãe Harder! Bem o C... me disse que viesse falar-lhe, pois a senhora certamente daria um jeito de me ajudar"
Ele se vai, ligeiro e feliz.. Na porta, ainda se volta, dá um sorriso e repete:
"Muito obrigado, mamãe Harder!"
Nós observamos tudo, admirados e confusos! Afinal parece realmente ser uma escola... O moço, ao dirigir-se à senhora, primeiro a chamou de senhora Harder e ela o chamou de meu filho. Ao despedir-se ele usa a expressão "mamãe Harder" por duas vezes. Qual a realidade de tudo isto?
Não podemos nos deter em conjecturas. A sra. Harder (agora já sabemos o seu nome) deixa de lado a costura e sai por uma outra porta. Vai, pelo corredor quase escuro, e bate à porta de um aposento. Bate e abre. No escuro mesmo, ela fala:
"Mathilde, você ainda está acordada?"
Mathilde? Quem será? Filha? Aluna? De qualquer maneira, pelo diálogo que se segue depreendemos que naquele quarto está uma dedicada auxiliar da sra. Harder. Alguém que conhece toda a atividade da casa, todas as dificuldades e que está acostumada a ajudar na busca de soluções.
"Mathilde, sabe se ainda resta algum tecido daqueles que nos mandaram dos Estados Unidos? Não são tecidos muito bonitos, mas são fortes e se houver um pedaço, vai me ser útil. É para fazer uma camisa para o B."
" Que pena, sra. Harder! O último pedaço eu usei para uma roupa para o D. Ele estava quase sem poder ir mais à aula, pois suas calças estavam demasiado gastas. Então o professor Roth falou comigo ( professor Roth? Ah... então é uma escola mesmo!) e eu costurei a roupa. Desculpe, deveria ter-lhe falado."
"Não se preocupe, Mathilde. É provável que o sr. Harder traga algum dinheiro na sexta-feira, então poderemos providenciar uma camisa para o rapaz que necessita."
"Mas, sra. Harder, o pastor chega bem à tardinha. Por certo não teremos tempo de comprar tecido e costurar a roupa necessária. E camisa pronta? Acho que não encontraremos, a não ser muito caras."
"Mathilde, será que temos na despensa algum saco de farinha ou de açúcar vazio? Ou algum que já não esteja tão cheio e que possamos guardar o produto em algum outro lugar?"
"Parece-me que já há uns dois ou três sacos vazios..."
"Então nosso problema está resolvido. Amanhã, lavaremos os sacos, os alvejaremos e depois vamos tingi-los com as tintas que temos. O nosso velho tacho vai-nos ajudar. Depois, confeccionaremos a camisa de que o nosso jovem precisa. Acho que ele vai ficar com uma camisa bem vistosa. Vai ser um tanto trabalhoso, mas posso contar com você, não é?"
"Claro sra. Harder. O B é um bom rapaz e merece que o ajudemos."
A sra. Harder volta para o seu posto perto do fogão. Ela reativa o fogo que quase se extingüira. En-quanto as chamas se reanimam, ela retoma a costura e agora, já não canta... Agora está silenciosa... Parece que seus pensamentos vagueiam... Eles vagueiam e chegam ao dia em que seu querido esposo, atendendo à voz do Senhor e aos seus mais acalentados sonhos, fundou esta Escola.
Uma escola, sim... Pobre, cheia de dificuldades, de problemas quase insolúveis, de alunos dedicados, mas carentes de quase tudo... No entanto, é a Escola dos sonhos de Abraham Classen Harder, o esposo a quem tanto ama e a quem sempre tem procurado ajudar com carinho e dedicação.
Quem é Abraham Classen Harder? De onde veio? O que faz? Por que quis fundar uma Escola?
A história vem de longe...De muito longe no tempo e no espaço. Ela atravessa países e continentes e, cheia de amor, vem acontecer na região sul de um país tão distante. Essa história de amor, de abnega-ção, de coragem e confiança em Deus, tem sua origem no longínquo passado e na distante Europa Longe... muito longe...
Primeira Parte
Os Primórdios
Capítulo 1
De Terras Longíquas
O navio S.S. City of Brooklin singrava as águas profundas do Atlântico. Corria o ano de 1874. Entre os passageiros, havia um grupo que se diferenciava dos outros por sua aparência e por sua postura. Fosse como fosse, porém, todos os viajantes estavam cansados e ansiavam pelo fim da viagem. O destino? Nova Iorque, nos Estados Unidos da América. Aquele grupo que se diferenciava dos outros ia para essa nova terra em busca de liberdade. Não liberdade civil, mas a mais importante de todas: a liberdade de consciência.
Muitas crianças estavam entre os passageiros. Afinal, famílias inteiras estavam se deslocando para a América pelo mesmo motivo . As crianças, por vezes, tornavam-se barulhentas, e para que não incomodassem os outros, os pais as levavam para os camarotes ou se reuniam com elas no convés, inventando brincadeiras mais silenciosas ou contando-lhes histórias e cantando baixinho com elas. Johann Harder, um dos viajantes, tinha catorze anos. Ele estava com seus pais e seus irmãos. Não era adulto, mas também não era mais criança. Seu pai o chamava de Johann V. Por quê? Quis saber ele certo dia. O pai, então lhe explicara que ele era o Johann número cinco da família Harder.
"Quer dizer que, antes de mim, já existiram quatro Johann em nossa família ?"
"É isto mesmo" - emendou o pai. - " O tetravô Harder nasceu no oeste da Prússia em 1765. Depois , o seu bisavô nasceu em Molotschna, no sul da Rússia."
" Eles tinham se mudado de cidade?" - quis saber o curioso menino.
"Não só de cidade, mas também de país. Tiveram de mudar-se por causa da perseguição."
A palavra "perseguição", na época, não preocupara o menino, que, atento, continuou a ouvir o pai enumerara lista de seus ascendentes.
O pai lhe contara que seu bisavô, Johann II, nascera em Molotschna, em 1789, e ali vivera até sua morte em 1847. Depois, o avô, Johann III, nascido em 1811, vivera sempre no mesmo lugar. Até morrer algum tempo antes de empreenderem a mudança para a América.
"Seu bisavô foi um homem muito importante, meu filho. Ele foi pastor de nossa igreja e desempenhou destacado papel no desenvolvimento da mesma."
Inda agora, tanto tempo depois, Johann V lembrava-se da maneira orgulhosa e cheia de amor com que seu pai falara do avô. Ele sabia que este fora um líder menonita que merecera a confiança dos membros de sua igreja. Exercera influência positiva em momentos difíceis, quando interesses individuais quase levaram o grupo à divisão. Sua voz sábia e cheia de autoridade, com base nos ensinos bíblicos conseguira impedir que os crentes se desintegrassem em vários outros grupos.
Agora, enquanto o navio seguia rumo a novas terras, o jovem Johann Harder, de 14 anos, muitas vezes, olhava com carinho para o pai, ainda novo na idade( nascera em 1836), mas já bastante desgastado pelas lutas da vida. Johann IV, seu pai, também nascera em Molotschna, ali estudara e se tornara professor. Era respeitado por seus alunos. Era um homem de bem e levou muitas pessoas a se filiarem a sua igreja. Dava testemunho de real seguidor dos ensinos de Jesus. Em 1865, porém, quando Johann V tinha cinco anos, a família Harder, com muitos outros vizinhos menonitas, tinha-se mudado para a Criméia.
O rapaz, lembrava-se de que quando perguntara ao pai o porquê dessa mudança de país, o pai lhe dissera:
"Temos de afastar-nos da perseguição."
Outra vez, aquela mesma palavra!
Johann V foi despertado de seus pensamentos ao ouvir que a mãe o chamava para a refeição da tarde. Depois que ceassem, os Harder se reuniriam a outras famílias num canto afastado do navio, quando então, teriam um culto de louvor a Deus. Ele gostava desses momentos, embora, algumas vezes, ficasse constrangido ao notar que alguns passageiros olhavam para o pequeno grupo com ares de curiosidade e até de deboche. Nesse culto, o pai leria a Bíblia, mencionaria pensamentos do irmão Menno Simons que fora um dos antigos líderes da religião deles, depois oraria, dando graças a Deus pelo cuidado e proteção e pela oportunidade de poderem ir para uma terra onde serviriam ao Senhor com tranqüilidade e paz, sem temer uma nova perseguição!
À noite, em seu leito, ouvindo o ressonar dos outros membros da família que dormia, o jovem de catorze anos não conseguia conciliar o sono. Aquela palavra "perseguição" estava como que impressa a fogo em sua mente. Ele já ouvira o pai e outros falarem sobre ela. Johann não havia sentido na pele os horrores de nenhum desses acontecimentos, mas tinha conhecimento das dores e tribulações por que alguns antepassados haviam passado.
Quando, certo dia, perguntara ao pai o porquê de serem perseguidos, este lhe respondera:
"Porque eram menonitas como nós!"
Agora, enquanto o sono não vinha, JohannV rememorava o que sabia a respeito dos menonitas. Afinal, era um deles. Ainda não havia sido batizado, mas o pai lhe prometera que tal fato se daria assim que chegassem ao fim da viagem.
"Você já é quase um adulto, já sabe entender as coisas e é um bom rapaz. Pode receber o batismo tal como a Bíblia ensina! Então, será realmente um dos menonitas."
Menonitas! O rapaz tinha reverente orgulho de seus antepassados. Fossem aqueles ligados à família por laços de sangue, fossem aqueles ligados por laços de fé. Os antepassados haviam sido corajosos em sua fidelidade a Deus e no cumprimento dos ensinos de Sua palavra: a Bíblia.
O movimento surgira nos primeiros anos séculos do Século XVI. Os precursores surgiram na Suíça, através da pregação de Conrad Grebel, que, por sua vez, os recebera de Zuínglio, o reformador. A princípio, foram chamados de anabatistas. Isto por que, em seu desejo de seguir os ensinos bíblicos, estes "protestantes" resolveram abandonar o costume romano de batizarem-se os recém-nascidos. Eram também pacifistas e tinham idéias diferentes dos outros cristãos a respeito da Santa Ceia. Por serem perseguidos por causa de suas idéias, foram-se espalhando por outros países: Prússia, Rússia, Holanda e outros mais.
Na Holanda, os anabatistas tiveram líder chamado Menno Simons. Ele era um sacerdote católico que chegou à conclusão de que as doutrinas anabatistas estavam certas. Perseguido, desligou-se da igreja romana e foi sagrado bispo dos anabatistas. Casou-se e passou a pregar por toda a Europa. Depois de algum tempo, os seguidores de Menno Simons passaram a ser chamados de menonitas
Johann V sentia-se emocionar ao relembrar estes fatos que lhe haviam sido contados pelo pai Geralmente, nos cultos familiares, o pai gostava de relatar detalhes da historia do irmão Simons e da religião menonita que já durava por três séculos! No entanto, em toda a história, havia sempre aquela mesma palavra: perseguição!
Agora, estavam ali, a bordo do S.S. City of Brooklin, rumo a uma terra desconhecida. O pai havia dito que lá já existiam muitos outros menonitas. Estes tinham deixado as estepes russas, muito tempo antes, a fim de ir para um lugar onde teriam liberdade de servir a Deus de acordo com os ensinos bíblicos.
Johann V finalmente adormeceu, embalado pelo ruído das máquinas do navio e pelos sonhos lindos que tecia em sua mente... Ele sabia que, desde o seu nascimento, os pais o haviam dedicado ao Senhor. Os pais oravam por ele e tinham a esperança de que ele continuaria a tradição familiar de ser um líder religioso, um esteio na comunidade menonita. O rapaz, em seus catorze anos, sentia sobre os ombros a responsabilidade de não decepcionar os pais a quem tanto amava. Ele também orava para que o Senhor fizesse dele um verdadeiro herói menonita.
Johann V adormeceu pensado na América, pensando em Deus e no seu desejo de ser um fiel servo do Senhor.
Capítulo 2
Novos Rumos
Nova Iorque! Julho de 1874. O S.S. City of Brooklin chega a seu destino. A família de Johann Harder IV está em sua nova pátria. Agora, é confiar em Deus e construir uma vida diferente daquela que tinham levado até então.
Os Harder, juntamente com outra família menonita, a família de Jacob Wiebe, se dirigiu a uma comunidade de crentes perto de Hillsboro, no estado Kansas. Estas intrépidas famílias sabiam que ali estariam em segurança para guardar suas convicções religiosas. Em toda a América, já havia muitos e muitos grupos menonitas e as próprias leis do país lhes garantiam a liberdade de consciência.
Nem tudo foi fácil! Aprender a língua inglesa tornou-se um desafio, especialmente para os adultos. Todos, porém, sentiam-se felizes por estar numa terra onde podiam seguir seus princípios religiosos sem temor e sem constrangimento.
Com muito esforço e muito trabalho, conseguiram se estabelecer e passaram a uma vida, se não fácil, pelo menos com tranqüilidade e paz.
Papai Harder, o Johann IV, viu os filhos todos crescerem fiéis à doutrina que lhes havia ensinado. Viu muitos americanos aceitarem essa mesma doutrina. Logo tornou-se o líder espiritual de sua comunidade religiosa. Recebeu o título de pastor menonita e, como tal, fez o seu melhor em favor do trabalho do Senhor. Foi líder, ministro, conselheiro e amigo. Faleceu em 1930, aos 94 anos, como valoroso defensor da verdade menonita. Chegou a ouvir a mensagem do advento, mas nunca a aceitou.
Johann V, desde que a família chegou à América, foi um excelente auxiliar do pai nas pradarias dos Kansas. Apesar de ser apenas um adolescente ao chegarem, trabalhou lado a lado com o pai no preparo das tábuas para construírem a nova casa. Aprendeu a cuidar do gado, dos cavalos e a plantar sementes para depois colher e ter alimentos.
Ao chegar à idade adulta, ele adotou a grafia inglesa para o seu nome: Johann passou a ser John. Sempre fiel e diligente, foi assumindo, pouco-a-pouco, a direção da família, à medida em que o pai ia envelhecendo. Tinha tudo para ser um bom fazendeiro e ainda ser o líder espiritual de sua comunidade.
Quanto mais o tempo passava, porém, mais ficava claro que os interesses de John não era pelas coisas materiais, mas sua preocupação maior era com as coisas espirituais. Ele bem sabia que havia sido dedicado ao trabalho de Senhor desde o seu nascimento e era isto que lhe enchia os pensamentos. No final do século XIX, era visto como o mais novo e talentoso ministro da igreja menonita, com um futuro brilhante e a previsão de uma vida sem preocupações financeiras. John Harder amava sua igreja e a ela dedicaria a sua vida, tal como imaginara aquela noite, a bordo do S.S. City of Brooklin... Sim, ele cumpriria os planos que os pais tinham para ele!
Mas isto não seria assim. Deus tinha outros planos para Johann V, ou melhor, John Harder. Na primavera de 1884, quando John tinha vinte e quatro anos, dois jovens, L.C. Conradi e J.D. Shrock vêm a Hillsboro e começam a proclamar a mensagem adventista. Passado um ano, já havia uma igreja organizada com cento e vinte e três membros. A mensagem que os dois forasteiros pregavam concordavam com os princípios defendidos pelos menonitas. Doutrinas como o arrependimento, conversão, batismo por imersão, lava-pés, Santa Ceia, separação entre igreja e estado, a não-violência, não eram estranhas para eles.
Havia, porém, alguns pontos bastante divergentes. Alguns até um tanto difíceis de serem entendidos: a iminente volta de Jesus Cristo nas nuvens dos céus para juntar Seus escolhidos; a obrigatória natureza de o sábado ser o sétimo dia do quarto mandamento e o juízo investigativo. A mais inaceitável, contudo, era a doutrina do sábado, uma vez que a maioria dos cristãos consideravam o domingo como o sétimo dia.
Muitas famílias menonitas começaram a aceitar as novas doutrinas e a se unir ao novo grupo religioso que se formara em Hillsboro. Isto deixou os líderes bastante preocupados. John Harder, no entanto, ficou tranqüilo em seu canto, mais observando do que dando opinião. Nem mesmo quando o pai lhe perguntava alguma coisa a respeito. Começou a ler toda a literatura que conseguia sobre os adventistas. Estas lhe chegavam pelo correio
Um dia, quando John e o pai conversavam, Johann IV disse ao filho:
"Você não acha, meu filho, que devemos, como ministros , alertar os nossos irmãos contra esses intrusos adventistas?"
" Se eles realmente forem intrusos, meu pai, e se estiverem pregando doutrinas falsas..."
John foi reticente, parecendo escolher, com cuidado, aquilo que pretendia dizer. O velho Johann ficou olhando para o filho, esperando que ele terminasse o que queria dizer. Depois de pensar um pouco, o rapaz continuou:
"Parece-me, papai, que o apóstolo Paulo e os outros apóstolos foram também considerados intrusos e falsos. O mesmo aconteceu com Menno Simons e com os outros reformadores. Acho que antes de nos colocarmos contra eles, deveríamos fazer como os bereanos que ‘examinavam nas Escrituras para ver se as coisas eram assim."
O pai comentou que, na verdade, a doutrina da volta de Jesus e a da guarda do sábado não eram idéias novas. Ambas tinham sido pregadas e observadas pelos primeiros reformadores da igreja e antes deles, já tinham sido doutrinas da primitiva igreja cristã.
" Mas estas doutrinas foram sendo deixadas de lado." - replicou John. E então acrescentou:
" Eu me lembro das perseguições que sofreram os anabatistas e os menonitas. Em minha infância, a palavra 'perseguição' nos perseguia como um fantasma. Lembro-me também de que vovô Harder contava-nos muitas histórias desses heróicos cristãos do século XVI. Quando surgiram novas doutrinas, baseadas na Bíblia, também os que as pregavam foram mal compreendidos. Será que o mesmo não está acontecendo agora com os adventistas?"
O pai tornou a repetir que as pregações dos adventistas, na verdade não eram idéias novas, que realmente já tinham sido seguidas por muitos cristãos pioneiros.
"Como tais idéias foram-se perdendo ao longo do tempo, quem sabe o Senhor Deus achou que deveriam ser retomadas e escolheu um povo para fazer isto..." - respondeu o pensativo John.
"Tudo bem, filho. Mantenha o seu bom senso. Sei que você será fiel àquilo que sua consciência lhe ditar."
" Minha consciência é a palavra de Deus, papai. Estudando-a, sei que acharei o caminho que o Senhor tem preparado para mim" - respondeu John Harder.
No seu íntimo, o jovem pregador menonita já se considerava um adventista do sétimo dia.. Seus superiores eclesiásticos o admoestaram repetidas vezes. Ele, porém, continuava a ouvir a voz da palavra de Deus. Finalmente, foi despojado de suas credenciais de pastor menonita. Também lhe foi tirada a carta de membro da igreja. Ele, então, anunciou abertamente sua aceitação às novas doutrinas pregadas pelos adventistas. Era o ano de 1893.
Em seguida, John Harder foi recebido como membro de sua nova igreja. Imediatamente, começou a pregar sua fé numa e noutra escola por onde passava. Ele falava bem e era convincente em seus argumentos. Dentro em pouco, já havia outro bom grupo de adventistas perto de Hillsboro e John Harder era o seu pastor. Preocupado com a educação de crianças e jovens, John foi pioneiro da educação adventista no estado de Kansas. Fundou as primeiras escolas paroquiais em Lehig, Shafer e Nekoma. Depois, fundou uma escola particular em Hooker, Oklahoma. Esta escola atraiu não só alunos das redondezas, mas também um bom grupo de jovens de outras localidades. O lar dos Harder acolheu os jovens que vieram de longe em busca de melhor educação. E o espaçoso lar da família funcionou como primeiro internato adventista da região. Sua gentil e dedicada esposa o acompanhava em seus ideais e o casal pôde induzir muitos jovens aos caminhos do Senhor.
Em 1910, o Seminário Germânico de Clinton ( German Seminary at Clinton) decidiu preparar pregadores que pudessem falar alemão para que levassem o evangelho aos muitos imigrantes de origem germânica. John Harder recebeu o chamado para dar instrução religiosa naquela instituição e o aceitou de bom grado. Deus traçara novos rumos para sua vida, mas ele confiava em que os caminhos do Senhor eram sempre os melhores.
Muitos moços e muitas moças que se formaram nessa escola e se dedicaram à obra missionária, receberam orientação religiosa e treinamento desse humilde, mas dedicado servo do Senhor.
Johann IV, pai de John, viu o filho labutar na obra adventista. Embora o amasse muito, fez ouvidos moucos às insistências do filho para que também se tornasse um adventista do sétimo dia. Como sabemos, faleceu em 1930, fiel aos seus ideais menonitas.
Quanto a Johann V, depois John Harder, a igreja deve a ele a conquista de muitos e muitos jovens para Cristo. Ele passa os seus últimos anos em Shafter, Califórnia. Descansou no Senhor, confiante no breve retorno de Jesus Cristo. Deixou os filhos John, Abraham, David e Elizabeth, que confirmaram a idéia de que uma saudável herança espiritual e um ambiente favorável fazem uma vida útil e cheia de vitórias.
Capítulo 3
Rumo ao mar!
Abraham Classen, o segundo filho de John, nasceu a 7 de março de 1889, na cidade de Buhler, Kansas. Como seu irmão mais velho, John, ele também se preparou para trabalhar na seara do Senhor. Seguindo os passos do pai, os dois irmãos se preocupavam com a educação da juventude. Ambos tiveram seu preparo intelectual no Seminário Teológico de Clinton ( Clinton Theological Seminary), nome adotado pela escola em lugar de Seminário Germânico.
Mary Voth, filha de A. J. Vogt, um ministro menonita de Dacota do Sul que aceitara a mensagem adventista, tornando-se dedicado pastor de sua nova igreja, foi estudar no Seminário de Clinton, desejando preparar-se para ser uma missionária. Abraham e Mary se encontraram e se enamoraram. Ambos tinham o mesmo santo ideal de trabalhar para Deus. Foi assim que se casaram a 27 de maio de 1911 e juntos iniciaram o seu ministério no estado de Kansas. Ele como evangelista, ela como instrutora bíblica e organista.
Algum tempo depois, aceitaram um chamado para trabalhar no Canadá como professores. Nos primeiros 2 anos, o missionário trabalhou como professor numa escola elementar. Nos 9 anos que se seguiram, ele lecionou no Colégio Adventista de Lacombe, Alberta. Ali, em contato com a juventude, seu trabalho não consistia apenas em dar aulas. Ele se preocupava em salvar os jovens e em prepará-los para que servissem no trabalho do Senhor. Este era a seu constante objetivo, assim como já fora o de seu pai. No seu afã em ganhar almas, mesmo não estando ligado diretamente ao evangelismo, pastor Harder, muitas vezes, percorria, a cavalo, as estradas geladas do interior canadense buscando almas para Cristo. Durante os 11 anos que passou no Canadá, Mary sempre ajudou na cozinha das escolas, trabalho que exerceu sem remuneração. Foi uma obreira voluntária de tempo integral.
Em 1917, nasce o primeiro filho do casal, Leon Mozart . Em 1921, Mary viajou aos Estados Unidos para visitar seu pai que tivera um ataque cardíaco. Foi assim que Palmer Wilbert, o segundo filho, nasceu em Oklahoma –USA. O pai de Mary faleceu 4 dias após o nascimento do neto.
Abraham e Mary Harder deram o seu melhor nas terras gélidas do Canadá durante o tempo em que lá estiveram. Deus, porém, tinha novos planos para eles.
1922... A vida do casal Harder e de seus dois filhos deveria dar uma guinada irreversível. Maravilhosos os caminhos de Deus! Na Sua onisciência, Ele estava preparando uma magnifica missão para os dedicados missionários. 1922...O casal Harder recebe da Associação Geral da Igreja Adventista, o convite para trabalhar no Brasil. No ponto extremo desse país: o Rio Grande do Sul. O chamado era urgente. Quão preocupados ficaram Mary e Abraham. Ir, praticamente, de um extremo a outro do mundo, aprender nova língua, conviver com pessoas de outra cultura! Quão difícil lhes pareceu tudo a princípio. Mas eles não eram de fugir dos desafios e das lutas. O chamado era de Deus e eles o aceitariam. As dificuldades? Foram entregues todas nas mãos do Senhor.
Foi assim que o casal de missionários e os dois filhos deixaram as terras geladas do Canadá em busca que de uma terra da qual pouco ou quase nada conheciam. Depois de breve estada nos Estados Unidos, onde visitaram os parentes e receberam as primeiras noções da língua portuguesa, a família iniciou a viagem rumo ao Brasil, rumo ao Rio Grande do Sul, seu novo local de trabalho.
A 7 de março de 1922, embarcam no velho navio Vassary e deixam o porto de Nova Iorque com destino ao seu posto de trabalho no hemisfério sul. A viagem durou 19 dias, tempo que foi aproveitado para ler alguma coisa sobre o Brasil e para tentar aprender mais um pouco da língua portuguesa que tão difícil lhes parecia.
Chegaram ao Rio de Janeiro em 26 de março. A cidade maravilhosa os encantou! Leon, o filho mais velho, que já entendia bem as coisas ficou entusiasmado com as quentes praias cariocas. Afinal, depois de 19 dias só vendo águas, as areias brancas eram, realmente, um belo espetáculo. A senhora Harder gostou do calor . Após tanto tempo em terras frias do Canadá, o sol brilhante encheulhe a vista .O pequeno Palmer, certamente, ficou contente de poder de novo caminhar em terra firme. Foram estas as primeiras impressões que a família Harder teve do Brasil.
Antes de viajarem para o Rio Grande do Sul, visitaram a Casa Publicadora Brasileira, editora dos adventistas, em Santo André, São Paulo e também o Colégio Adventista Brasileiro, em Santo Amaro. O pastor Harder participou das comissões da União Sul-Brasileira. Depois, a família ficou mais algum tempo no Colégio para que o casal tivesse oportunidade de estudar um pouco mais o idioma com o qual deveria comunicar-se com o povo da terra à qual estavam chegando.
No início de dezembro, os Harder tiveram o privilégio de assistir à formatura da primeira turma a se formar no Colégio. Para alguém tão preocupado com a educação de jovens, aquele foi um momento de muita emoção. O Colégio, fundado em 1915, formava sua primeira turma de obreiros para a causa de Deus. O lema desses jovens promissores ( havia moças entre eles) era " Rumo ao mar!" Pastor Harder se identificou muito com estes formandos. Ele e sua pequena família tinham, literalmente, feito isto: rumo ao mar!
Nos últimos dias de dezembro de 1922, finalmente a família chegou a Porto Alegre, capital do estado gaúcho. O pastor Harder assumiu presidência da Associação Sul-rio-grandense da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Passaram a morar no bairro da Glória. Em 1925, nasce Neander Calvin, o terceiro filho do casal de missionários. Que alegria! A partir desse momento, os Harder estariam para sempre ligados a esta terra. Afinal, uma parte deles era, agora, brasileira!
Capítulo 4
Nasce o Sonho
Abraham Classen Harder iniciou o trabalho assim que chegou. Havia muito a ser feito e ele não era homem de ficar à espera de qualquer coisa. "Mãos à obra" era o seu lema.
A Denominação Adventista, naqueles idos, não era ainda estruturada como hoje. As distâncias eram enormes, poucos os obreiros e muito, muito a ser feito em favor dos membros da igreja, espalhados num vasto território e também em favor de outros que sequer conheciam o caminho da salvação.
Então, a velha rotina começou outra vez. Viagens longas, dias muito quentes a princípio... Depois o inverno rigoroso... As igrejas tinham de ser visitadas...Perto, longe, muito longe! A pé, de ônibus, em lombo de cavalo, de carroça, de charrete, de trem... Lá se ia o pastor em busca das ovelhas e por que não? Também de seu pequeno grupo de obreiros que também carecia de ajuda, de conforto e de apoio espiritual. Assim, lá se ia ele, intrépido cuidando dos interesses da igreja que lhe fora confiada.
Já na sua primeira andada pelo estado, a fim de conhecer seu campo de trabalho, o pastor Harder notou que, nas igrejas, havia muitos e muitos jovens e crianças. No entanto, em todo o estado sulino, só existiam 5 pequenas escolas paroquiais: Rolante, Campestre, Campo dos Quevedos,. Não-me-Toque e Faxinal de Dentro.
Fazendo um levantamento dos jovens existentes nas igrejas gaúchas, o pioneiro encontrou um bom grupo de jovens espalhados pelas várias congregações. Dentre tantos, poucos teriam oportunidade de ir estudar um pouco mais no Colégio de São Paulo. Alguns até já tinham ido para lá, com pouco preparo, a maioria apenas com o curso primário. O missionário ficou sabendo que muitos, ao chegarem ao Colégio, não conseguiam se ambientar ou não tinham condições intelectuais de acompanhar os outros alunos. Além do mais, alguns que até pensavam em receber melhor preparo, preocupavam-se com a distância entre o Rio Grande do Sul e São Paulo: quatro dias e quatro noites em trens desconfortáveis ou seis dias em navios velhos e sacolejantes. Realmente desanimador!
Grande parte dos jovens, com disposição até de enfrentar todas essas dificuldades, não tinha condições financeiras para tal empreitada. A situação era mesmo bastante difícil. Assim é que apenas uns poucos jovens tinham conseguido receber melhor preparo para trabalhar para Deus, fosse como obreiros, fosse como membros leigos em suas igrejas.
Ao verificar esta difícil situação, o pastor Harder começou a sonhar com a possibilidade de se ter um educandário, aqui mesmo nas terras gaúchas, onde os jovens pudessem, com mais facilidade, estudar e se preparar para os trabalhos do Senhor. Era um sonho de remota realização, ele bem o sabia. Que maravilha, porém, se pudesse ser realizado! A terra gaúcha era rica de jovens, mas pobre de finanças. No passado, até tinha havido uma tentativa de se estabelecer um educandário na cidade de Taquari, onde nasceu a Casa Publicadora Brasileira. Quando, porém, esta se mudou para São Paulo, o pequeno colégio deixou de existir. Foi de efêmera passagem. Por isso, o pioneiro sabia quantas dificuldades teria de enfrentar, caso quisesse levar avante o seu arrojado sonho.
Ao chegar a alguma igreja, o pastor olhava para aquele punhado de rostos jovens, ávidos de conhecimento e imaginava-os numa Escola onde recebessem educação e instrução, além da elementar, para que depois pudessem ir ao colégio de São Paulo, mais capacitados para enfrentar cursos mais avançados para se tornarem pastores e professores. Em sua imaginação, via ainda outros que nem precisariam ir além dos limites gaúchos. Poderiam receber, aqui mesmo, o preparo necessário para terem sucesso na vida e se tornarem cidadãos úteis.
Não raro, em suas viagens, olhando fascinado a paisagem sulina, pensava o pastor Harder:
" Que belo lugar para se construir uma escola de internato!"
O tempo passava... O sonho, longe de desaparecer, cada vez mais falava ao seu coração. Seria realizado algum dia? Só o Pai do céu poderia saber. Humanamente falando, o projeto parecia irrealizável.
Um dia, encorajado, levou seu plano aos administradores da União Sul-Brasileira da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A União Sul deliberava sobre os destinos da Associação Sul-rio-grandense. Seu entusiasmo era grande enquanto apresentava seus planos aos superiores. Decepcionado, ouviu deles um retumbante: não! Como iriam fundar uma escola se não havia dinheiro para isto? É claro que os jovens gaúchos mereciam receber educação e instrução, mas ainda não era o momento certo para se empreender uma atividade tão arrojada! Ante a insistência do missionário, disseram-lhe que era um visionário, acalentando idéias impossíveis. Voltasse para o sul e não se preocupasse mais com o assunto.
O pioneiro calou-se. Mas não se esqueceu do seu sonho. Certamente, chegaria o dia em que os administradores veriam com outros olhos a necessidade de se ter, em terras do sul, um lugar de refúgio para a valente mocidade destas plagas
. Os trabalhos à frente da Associação Sul-rio-grandense ( denominada, na época, Associação dos Adventistas do Sétimo Dia do Rio Grande do Sul), tomava-lhe muito tempo e exigia dele bastante esforço. Não foram poucas as vezes em que pastor Harder, só ou acompanhado de outro pastor, viajava quilômetros e quilômetros em lombo de cavalo ou em rústicas carroças, já que havia membros da igreja em recônditos tão distantes aos quais ainda não chegara estrada que permitisse um meio de transporte mais cômodo. Por vezes, o cansaço era tanto que quase lhe minava as forças. Mas nem mesmo nestes momentos difíceis, ele se esquecia do seu sonho. E como poderia esquecer?
Por todos os lugares por onde andava, lá estavam os jovens para aumentar a sua ansiedade. Cada vez que conversava com um deles, mais o missionário se convencia da urgência de se criar uma Escola em terras gaúchas. Toma coragem e mais uma vez vai insistir com os seus superiores. Apresenta-lhes argumentos quase irrefutáveis. Havia tantos jovens, moços e moças necessitando de se desenvolver intelectualmente... A Obra precisando de gente preparada para o trabalho... Por que não levar avante o plano?
De novo, um sonoro: não! Havia já o Colégio de São Paulo. A própria Associação sulina tinha que dispor, periodicamente, de verba para ajudá-lo. Como se poderia pensar no encargo de uma outra escola?
Não foram poucas as vezes em que o missionário foi taxado de sonhador e visionário. Outras línguas mais ferinas usavam termos mais acintosos quando se referiam a ele. Finalmente foi-lhe dado um "basta"! Que não falasse mais naquele assunto. Escola de internato no Rio Grande do Sul era uma idéia totalmente descabida e assunto encerrado!
Assunto encerrado? Não para o nosso pioneiro. Ele não era homem de desanimar quando sentia que Deus o estava guiando. Algum tempo antes, ele havia lido um livro chamado " O apóstolo moderno da fé". Este livro fora escrito por George Mueller. No livro, o autor contava como havia fundado um orfanato em Bristol, Inglaterra, e como o havia mantido apenas com fé e orações.
Esta lembrança trouxe novo ânimo ao pastor Harder. Se Deus havia atendido a George Mueller, providenciando-lhe meios para manter o seu orfanato, por certo, poderia também fazer o mesmo em favor de um internato para o Rio Grande do Sul. Ele e sua esposa não vinham orando perseverantemente para que um caminho fosse aberto?
Com emoção, ele pensou em sua amorável esposa Mary e nos filhos. Todos partilhavam de seu sonho. Às vezes, quando o desânimo o ameaçava, ela, a fiel companheira, o incentivava. Se o plano vinha da parte de Deus, por certo Ele daria um jeito para que o sonho se tornasse realidade. Agora era orar... orar... e orar...
Estes pensamentos lhe serviram de novo vigor. George Mueller conseguira. Com a ajuda do Senhor, Abraham Classen Harder também conseguiria!
" Se Deus é por nós, quem será contra nós?"
Capítulo 5
Sob as ordens de um anjo... finalmente!
Fins de 1927 ou, quem sabe, inícios de 1928. Os Harder já estavam há quase 5 anos no Brasil. O pequeno Neander, o brasileirinho, já pronunciava as primeiras palavras, misturando inglês e português... e a escola ainda era um sonho.
Houve um dia em que Mary e Abraham chegaram à conclusão de que, se quisessem mesmo construir uma escola, teriam de fazê-lo por sua própria conta e risco. Estava mais do que certo de que não receberiam apoio ou ajuda oficial de nenhum setor da Igreja.
"Não podemos contar com mais ninguém a não ser com o Pai celeste" - disse Mary. - "E se temos de dar esse passo, não podemos demorar muito. Enquanto estamos esperando, é bem provável que muitos jovens estejam indo para escolas mundanas e acabem por perder a fé. Isto não pode acontecer!"
Ele bem o sabia! Mas para construir uma escola por conta própria, teria de usar todas as economias da família. Era bem verdade que a esposa pusera a sua disposição uma herança pessoal que recebera por morte de sua mãe. Não era lá uma grande fortuna, contudo com esse dinheiro, Mary poderia providenciar maior conforto para a família e adquirir algum bem para sua alegria e bem-estar. Teria, então, ele o direito de usar o pouco de que dispunham para realizar o sonho tão acalentado ?
A decisão da esposa, porém era irrevogável. Que a sua herança fosse usada para providenciar um educandário. Quanto ao futuro, nada lhes faltaria, por certo. Os jovens, porém, não podiam esperar mais.
Houve um dia, em que as dúvidas e apreensões quase fizeram o pioneiro esmorecer. Na verdade, o passo que pretendia dar era muito grande e muito arriscado! O que fazer? Orar...sempre orar. Deixemos que o próprio Abraham Classen Harder nos conte sobre este dia.
" Passei muito tempo em meditação e oração. Finalmente resolvi, com o auxílio divino, prosseguir e estabelecer uma instituição. Não encontrei apoio por parte do Organização, por haver demais despesas envolvidas. (...) Após longas horas em oração sobre este assunto, um anjo apareceu a meu lado dizendo: - ‘ não temas! Segue de perto os desejos do teu coração. O Senhor te sustentará e a obra prosperará.’ Então me senti confortado e animado." (1)
Maravilha das maravilhas! Não havia mais temor, não havia mais dúvidas! O Pai do céu enviara um anjo para lhe dar uma resposta e coragem para
avançar! A escola dos sonhos seria fundada, sim, e prosperaria. Não foi esta a mensagem do Senhor através de um anjo? Ele e a sra. Harder conversaram com os filhos mais velhos, que já podiam entender e receberam deles total apoio e compreensão. Mais uma vez, a esposa ofereceu sua herança para realizar o sonho do esposo. O sonho que não era só dele. Era dela também. Tudo daria certo... O Senhor o prometera!
Começaram, agora, a procurar um lugar adequado e cujas posses lhes permitissem adquirir. Numa próxima viagem, o pastor Harder examinou várias regiões, levando em conta a localização, a proximidade de igrejas e outros quesitos importantes. Depois de vária considerações, chegou à conclusão de que as proximidades da cidade de Taquara seriam um bom lugar. A cidade não estava muito longe de Porto Alegre e era uma região agradável. Além do mais, a família Bergold, adventistas de longo tempo, tinha uma bela propriedade da qual poderia dispor por um preço razoável.
Depois de muita oração, a decisão foi tomada. Em meados de novembro de 1928, efetuou-se a compra da fazenda onde surgiria a tão ansiada escola. Nela já havia um rebanho de gado, cavalos, uma junta de bois para o trabalho e algumas máquinas. A propriedade custava 95 contos de réis em dinheiro da época. A entrada foi de 15 contos e o resto seria em prestações anuais, conforme se pudesse pagar e a baixos juros. Na madrugada do dia seguinte ao da compra, o casal de missionários regressou a Porto Alegre para preparar a mudança. Era o início da realização do sonho!
Finalmente! Estava fundado o educandário dos sonhos do pastor Harder! Era 14 de novembro de 1928! Muito empenho, muita prece, muito trabalho, uma herança pessoal, tudo em prol da juventude. Uma casa foi alugada nas proximidades da fazenda. Ali se abrigaria a família Harder e também os primeiros alunos que procurassem a novel Escola. O imóvel que a família possuía em Porto Alegre foi vendido e os recursos utilizados nas necessidades da instituição recém fundada.
Que nome se daria a este refúgio da juventude? Não foi preciso muito esforço.
Certa noite, logo após a mudança para Taquara, a família estava no quintal apreciando o belo céu do hemisfério sul.
Comentavam o brilho desta ou daquela estrela, desta ou daquela constelação. De repente, alguém chamou a atenção para o Cruzeiro do Sul que brilhava no céu escuro. Falaram sobre a beleza do grupo de estrelas e sobre o fato de ser o Cruzeiro um ponto de referência no processo de orientação. Ao ouvir isto a sra. Harder disse:
"Cruzeiro do Sul é um belo nome para a nossa Escola. Além de ser um bonito nome, é também significativo. Nós queremos que a nossa Escola brilhe como o Cruzeiro do Sul e que também sirva de guia e orientação para os jovens que para cá vierem". Todos concordaram que realmente não poderia haver melhor nome. Assim surgiu o Colégio Cruzeiro do Sul, escola de propriedade do casal Harder e que deveria se tornar um marco para a juventude adventista do Rio Grande do Sul.
(1) De um depoimento do próprio pastor Harder
Capítulo 6
Chegam os primeiros alunos
Início de 1929. O Colégio Cruzeiro do Sul não é mais sonho. É realidade! A família Harder já se instalou nas proximidades da fazenda. Ernesto Roth, chamado para ser o primeiro professor, marceneiro habilidoso vai construir o prédio de aulas ( e de muitas outras necessidades). Pastor Harder adquirira, na cidade de Taquara, uma casa de madeira que seria demolida. A madeira, em bom estado, seria vendida a preço de ocasião a quem se propusesse a demolir o prédio. O preço? Um conto de réis! Prof. Roth, com auxílio de alguns voluntários, cuidadosamente desmanchou a casa e a madeira foi trazida com muito cuidado para que não sofresse danos. Foi necessário comprar um pouco mais de madeira. Então, o professor iniciou a construção. Este prédio, quando pronto, seria usado para as aulas. Em cima, haveria acomodações para o professor e, em caso de necessidade, para abrigar alunos.
Hugo Bergold convidado para cuidar da fazenda, já plantara verduras e legumes. Pastor Harder iniciara o plantio das primeiras árvores frutíferas, que chegariam a 1000! Mary, a missionária, adquirira mais panelas, pratos, xícaras e demais apetrechos domésticos. A família aumentaria e muitas coisas seriam necessárias. Mathilde Kohler, a abnegada auxiliar, também missionária no sentido real da palavra, estava a postos para o que fosse necessário. Não está tudo bem pronto ainda. Mas que venham os primeiros alunos!
E eles vieram! Eram apenas 6. Todos rapazes. Ainda não havia maneira de se receberem moças. Entusiasmados, prontos a quaisquer sacrifícios para que pudessem receber a tão almejada educação cristã. Bem sabiam que tempos difíceis os esperavam. Jovens dinâmicos, porém, acostumados às peripécias da vida, não temiam desafios.
Alguns dos primeiros alunos internos vieram das cidades próximas a Taquara. Outros vieram de mais longe e outros ainda de muito... muito longe! Foi o caso dos três irmãos uruguaios que vieram desde a fronteira, a cavalo. Além das montarias, trouxeram mais alguns animais para oferecerem como pagamento de sua estada na escola.
Não havia ainda dormitório e o primeiro prédio não estava pronto. Os alunos foram-se acomodando como dava. Alguns na casa dos Harder, alguns na casa de Hugo Bergold e alguns em velhos celeiros.
Os alunos que tinham noção de marcenaria começaram a ajudar o prof. Roth na construção do prédio de aulas. Refeitório, cozinha e lavanderia funcionavam na casa dos Harder. Esta vivia sempre em alvoroço, pois ali era a "sede" da Instituição.
Quando o prédio de aulas ficou pronto, os rapazes e o professor se instalaram no sótão do mesmo. Agora, sim! Estavam em casa! Quão gratos eram a Deus pelo privilégio! Muitas vezes, conversavam entre si sobre o grande número de jovens que gostariam de estar também num colégio cristão.. e não tinham a mesma oportunidade. Ali, juntos renovavam os anseios de tudo fazerem para não decepcionar o casal que tanto se preocupara em prover uma escola para eles. A gratidão de uma vida toda ainda seria pouca. Quanta alegria lhes enchia o coração!
Levantar cedo demais? Dormir tarde, por vezes? Trabalhar pesado? Nada disso os intimidava. O nome do Colégio não era Cruzeiro do Sul? Pois bem, eles seriam estrelas que brilhariam agora e no futuro.
Em 1930, vieram as primeiras alunas internas. 2 apenas. Que alegria! Tinha havido, em Taquara, a Assembléia Bienal da Igreja Adventista. Assim, ambas vieram para assistir às reuniões, mas trouxeram seus pertences com o objetivo de conseguirem uma vaga na nova escola. Sueli veio de vapor desde a cidade de Taquari até Porto Alegre. Então tomou o trem para Taquara. Marta também viajou muitas e muitas horas de trem. Elas não se conheciam, mas ambas tinham no coração o desejo de estudar, para depois trabalhar na Obra do Senhor.
Não havia dormitório ainda para elas. Assim, uma se hospedou na casa dos Harder e a outra foi para a casa de Hugo Bergold. Em casa dos missionários, já estava alojada Mathilde Kohler. Agora, para poder acomodar uma menina, os três filhos do casal montaram seus quartos no sótão, quente demais no verão, frio demais no inverno. Mas não houve queixas, não houve reclamações. Era uma irmãzinha que estavam recebendo em casa, como irmãzinha também era a que estava em casa do chefe da fazenda. Havia tanto entendimento entre os alunos e os filhos do casal que todos chamavam os pioneiros de papai e mamãe Harder. Se os filhos tinham ciúme? Nenhum! Se todos eram irmãos, nada mais justo que tivessem o mesmo pai e a mesma mãe.
A chegada das meninas trouxe mais alegria e mais beleza à vida de todos. Marta ajudava a sra. Harder na lavanderia. Sueli era a auxiliar de Mathilde na cozinha. Quando sobrava algum tempinho as 4 trabalhavam na horta e dali colhiam todas a verduras de que precisavam para alimentar a família colegial que continuava a crescer e crescer sempre.
Em 1931, o pastor Harder entrou em contato com o Banco da Província do Rio Grande do Sul e fez uma espécie de arrendamento de uma propriedade vizinha à do Colégio. Era uma extensão de terra que se alongava até a localidade chamada Passo do Mundo Novo. Nela havia uma boa casa e para ali a família se mudou. Agora, havia uma casa mais ampla para abrigar a família e todos os outros setores da Escola. Algumas paredes foram removidas para que se conseguisse um amplo refeitório e mais duas salinhas: uma para biblioteca e uma para escritório. Havia ainda uma ampla cozinha, e mais três quartos que passaram a ser usados pelo casal e pelos filhos. Uma espécie de apartamento para a família a fim de que esta pudesse ter, de vez em quando, alguma privacidade. No entanto, quase sempre alguém estava por ali: uma aluna ou aluno recém-chegado, algum doente, alguma visita... enfim, a casa dos Harder nunca estava vazia.
Após essa mudança, providenciou-se imediatamente um dormitório para as moças. Mais algumas haviam chegado. Era pequenino, mas acolhedor. As moças ( não eram muitas) trataram logo de deixá-lo bonito. Plantaram flores na frente e cuidavam do jardim com muito desvelo. Por vezes, se dirigiam aos arredores para recolher esterco para adubar a terra. As pessoas que passavam pela estrada próxima ao dormitório diziam que elas estavam apanhando biscoitos. Logo, o jardim do dormitório passou a ser uma atração para os viajantes que passavam na estrada que cortava a propriedade da Escola e que ia dar às margens do Rio dos Sinos onde havia um pequeno porto que servia para embarque e desembarque de pessoas e mercadorias que iam para Porto Alegre ou de lá vinham.
Convém dizer que a esta altura, já se havia construído um dormitório para os rapazes, pois as acomodações no prédio das aulas estavam insuficientes. A referida estrada real, como era chamada, passava exatamente entre os dois dormitórios. Algum tempo depois, a Escola começou a ter problemas em virtude de pessoas inescrupulosas que por ali passavam. Pastor Harder entrou em contato com as autoridades para que a passagem por ali fosse proibida, uma vez que existiam outros caminhos para o Porto da Paciência. Depois de muita insistência, foi permitida a colocação de uma porteira que impedia a passagem das pessoas. Isto não isentou totalmente o Colégio de preocupações. Vez por outra, alguém mais ousado tentava invadir a propriedade o que causava transtornos à família colegial.
Alguns incidentes desagradáveis ocorreram por causa desta passagem proibida. Pastor Harder, várias vezes foi ameaçado por elementos suspeitos. Certa vez, chegou a ser espancado. Uma vez foi ameaçado de morte. A coisa foi tão séria que o delegado de polícia de Taquara ofereceu-lhe uma arma e sugeriu-lhe que andasse sempre armado para defender-se. O missionário não fez isto. Tal elemento foi preso por ouras razões. Ao ser libertado, disse a alguém que iria em busca do pastor Harder para "terminar o serviço". O delegado, preocupado, mandou dizer ao pioneiro que se cuidasse bastante. Logo depois, mandou-lhe outro recado: o tal elemento havia se metido em uma briga e havia sido assassinado num município vizinho. Embora lamentasse a morte de um ser humano, o pastor deu graças a Deus por não ter mais que se preocupar em defender sua vida. O velho pioneiro, contudo, comentou com alguns alunos:
" Gostaria de ter tido a oportunidade de falar de Jesus a este senhor. Quem sabe, ele teria me ouvido e mudado sua vida. Deus, porém, sabe o que faz."
Era assim Abraham Classen Harder. Confiança irrestrita nos planos de Deus.
II Parte
A Escola... ontem
Capítulo 1
Primeiro dia de aula
11 de março de 1929! Abraham e Mary Harder estão felizes. Hoje é o grande dia! Grande dia, por quê? Porque a sonhada Escola, pela qual tanto lutaram, vai ter o seu primeiro dia de aula.
Escola? Essas pequenas casas que pertenciam a uma fazenda? Escola? Verdade que há um prédio de madeira, com aparência de novo. Está bem pintado e bem construído, mas se o olharmos bem veremos que foi feito de madeira já usada. Nome da escola? Colégio Cruzeiro do Sul!
O sorriso da sra. Harder é contagiante. O senhor Harder caminha de um lado para outro verificando se tudo está em ordem. No entanto, esse tudo é ainda tão pouco...
Ele vai em busca de um jovem com características germânicas. Quem é ele? Ernesto Roth. Jovem recém-chegado da Alemanha. Ernesto, jovem idealista, marceneiro de qualidade, construiu a casa onde serão ministradas as aulas. Ainda bem que ele é bom profissional. A madeira, embora de boa qualidade, não é nova... Ele teve de arrancar tantos pregos!
Aquela casa velha que o missionário adquirira, fora bem aproveitada. Agora, o prédio aí está. Remodelado, pintado de branco, ficou até bonito. O professor-marceneiro fez também as carteiras, a mesa, as cadeiras... Agora, está esperando seus alunos. Alguns poucos são internos, ou melhor, moram na casa da família Harder. Só rapazes. Outros virão das poucas casas próximas da escola. Um ou outro virá da cidade de Taquara. Entre os externos, há algumas meninas.
Como virão? O pioneiro não sabe exatamente. Enquanto o professor Roth ajeita algo aqui e acolá, pastor Harder relembra os esforços feitos para que este dia se tornasse uma realidade. Sabe que nem tudo será fácil. Pelo contrário, será tudo muito difícil! Mas não se intimida. Deus está velando. Não lhe dissera Ele por meio de um anjo que a obra prosperaria? Lança um olhar afetuoso à esposa que, qual abelha laboriosa, ajeita o que acha ainda não estar bem para receber seus primeiros alunos. Dedicada esposa! Como o ajudou! Como!
Os primeiros alunos começam a chegar, despertando o pioneiro de seus devaneios. Há alguns de mais idade, alguns rapazotes e até, uns bem pequenos. Uns vêm a pé; outros, a cavalo; outros de charrete. A eles se juntam os três filhos do casal. Neander ainda é pequeno, mas vai alegre acompanhando os irmãos Leon e Palmer. São 27 ao todo. Que miscelânea bonita! Que alegria!
A sra. Harder saúda a todos. Pastor Harder os olha com carinho e o professor Roth, gentilmente, os conduz à sala de aula. Alguns parecem tão tímidos! Alguns, já moços feitos, sequer sabem ler. Outros, maiores ou menores, já têm alguma escolaridade. Como fará o professor? Cada um tem um grau de instrução diferente. E agora?
Amor! Muito amor! Sob a proteção dos céus e com muita dedicação, tudo poderá ser contornado. Os alunos são dóceis e estão ávidos por aprender. O professor tem certeza de que tudo dará certo.
Os alunos se acomodam nas toscas escrivaninhas. Não há cadernos. Apenas uma pequena lousa onde cada um vai escrever com uma espécie de giz. Ali farão as tarefas que o professor lhes propuser.
O fundador diz algumas palavras de saudação. Faz uma prece a Deus entregando-lhe os alunos e professor. Então, a aula começa.
O professor se põe a ensinar. Também para ele, nem tudo será fácil. Tem algumas dificuldades com a língua portuguesa. Existe solução, porém. Quando ele se atrapalha com alguma palavra, ele a pronuncia em alemão e logo um aluno vem em seu socorro. Há alguns alunos de origem germânica que sabem os dois idiomas.
Depois de algum tempo de aula, o professor propõe que cantem algum hino. Os alunos cantam com entusiasmo. O professor Roth também canta com animação. Em alguns momentos, porém, ele se esquece de olhar ao hinário e se põe a cantar em alemão... Ao alunos se entreolham e alguns deles resolvem acompanhar o professor cantando também em alemão.
Logo, tudo volta ao normal. O mestre continua a sua aula. Tem que fazer um levantamento sobre o que cada um já sabe. Tem que agrupá-los de acordo com o nível que apresentarem. Os grupos serão heterogêneos no que respeita à idade. Ele sabe que terá muito trabalho. Certamente precisará fazer serões para ajudar a um e outro. Sabe que os alunos internos terão de trabalhar duro, não só por que há muito trabalho a fazer na escola, mas também por que têm que pagar suas despesas com esse trabalho. São todos muito pobres. Alguns vieram quase que só com a roupa do corpo. A sra. Harder tivera de confeccionar, às pressas, alguma roupa para que pudessem ir à aula. Interessante - pensa o professor- os internos, vivendo na casa do pastor Harder, ouvindo os filhos chamarem o casal de papai e mamãe , passaram a chamá-los assim também. Então, papai Harder e mamãe Harder passou a ser o tratamento usual na escola. E era isto mesmo o que eles eram. Verdadeiros pais para aquele pequeno grupo de alunos pioneiros do Colégio Cruzeiro do Sul.
Agora, olhando para um e para outro, interno ou externo, o jovem professor propõe, no seu coração, fazer o que puder por eles. Quem sabe, muitos dos que estão ali assentados, serão, um dia, estrelas na obra do Senhor ou nos destinos desta pátria gentil que o acolheu... O professor pensa no futuro... Qual será o futuro destes jovens que o olham com tanto interesse?
Mais um pouco e a aula terminará. Então, o professor vestirá roupa de trabalho e irá ajudar no que for necessário. Pastor Harder em breve retornará a Porto Alegre para atender seus compromissos frente a Associação Sul-rio-grandense, da qual continuará a ser presidente. Então ele, o professor ficará ali para ajudar a senhora Harder no que for preciso. Ela conta com a sua ajuda e com a de Hugo Bergold. Ambos farão a sua parte com prazer.
Mathilde Kohler, dedicada auxiliar de mamãe Harder, tem de fazer muita comida. Os alunos internos trabalham muito e comem...comem...comem... Mathilde faz o seu trabalho com alegria. Empenha-se em aliviar as cargas da missionária a quem admira e a quem dedica um grande afeto. Salário? Mathilde nem se preocupa com isto. Seu prazer está em ajudar a este valoroso casal que tanto se preocupa com a educação dos jovens.
A voz de um aluno traz o professor Roth de volta à realidade. Está na hora de terminar aula. Recomendações são feitas. Uma oração se eleva ao céu pedindo a Deus que proteja a todos os alunos e então, aquele grupo feliz sai da sala de aula. 11 de março de 1929! Primeiro dia de aula do Colégio Cruzeiro do Sul: a Escola dos sonhos do casal Harder.
Capítulo 2
E o tempo foi passando...
Fundada a Escola, iniciado o primeiro ano letivo, urgia, agora, prover os meios necessários para que tudo continuasse a crescer. A preocupação maior do casal- fundador era que, todo jovem que viesse em busca de educação, pudesse recebê-la, tivesse ele o dinheiro necessário ou não. Os primeiros que vieram tinham muita fé, muita esperança, muito desejo de vencer, mas quase nenhum dinheiro. Alguns sequer tinham a roupa necessária. Mamãe Harder e Mathilda tomavam sacos de farinha e de açúcar, alvejavam-nos, tingiam e com eles confeccionavam roupas para os mais necessitados e os necessitados eram quase todos...
Como havia um bom rebanho bovino nas terras adquiridas, o pastor Harder montou uma pequena fábrica de laticínios. O sr. Hugo Bergold, chefe da agricultura e da pecuária, foi um bom auxiliar nos primeiros 2 anos. Mamãe Harder e Mathilde também ajudavam, apesar de todo o trabalho que tinham a fazer na cozinha e na lavanderia. O professor Roth, depois das aulas, trabalhava em sua marcenaria preparando móveis para a escola que crescia. Quando sobrava um tempinho, porém, ele também dava a sua contribuição à fabrica de laticínios. Pastor Harder, nos primeiros tempos continuou a atender seus trabalhos na Associação Sul-rio-grandense, mas quando vinha a casa, dava uma maõzinha no preparo de queijos e manteiga. Os alunos iam aprendendo os trabalhos e cada um fazia a sua parte com alegria e disposição.
Em dias certos da semana, os dois meninos Harder, Leon e Palmer e mais alguns alunos ajeitavam a velha carroça, atrelavam a ela o cavalo Chico e lá se iam para a cidade oferecer manteiga fresca, requeijão e queijo. Levavam também verduras, ovos, aipim, batata e milho. No pomar, havia centenas de arvores frutíferas, sobressaindo-se as frutas cítricas, as pêras, os pêssegos, as ameixas, etc. Após separarem o necessário para a alimentação dos alunos, levavam o que sobrava para vender.
Os produtos eram bons e os alunos que os vendiam eram muito educados. Em pouco tempo, já havia uma clientela certa e que, a cada dia, aumentava mais.. . Papai do céu velava e, apesar das lutas, sempre havia dinheiro para as necessidades mais prementes. Pastor Harder, a cada fim de mês, trazia seu salário e este era colocado à disposição da sra. Harder para comprar o que fosse necessário para o bom andamento da Escola.
Durante o primeiro ano, a missionária dirigiu o refeitório, a cozinha, cuidou das roupas e de outros afazeres que uma casa requer. Mathilde Kohler esteve sempre ao seu lado, mesmo sem ter um salário fixo. Ela preparava panelas e panelas de bom alimento. Quando tudo estava pronto, os alunos eram chamados. Mas, ás vezes, alguém, mais distraído não ouvia o chamado e terminava por se atrasar. O problema foi solucionado. Como não havia dinheiro para se comprar um sino, foram conseguidos dois pedaços de trilho de trem. Assim, quando era hora da refeição, batia-se um trilho no outro. Era um som suficientemente alto para que todos ouvissem e chegassem a tempo. Então, com que alegria todos devoravam os alimentos preparados, quase sempre, por Mathilde. Ela, sem dúvida, também foi uma heroína que ajudou a escrever a história dos primeiros tempos do Colégio Cruzeiro do Sul.
Nos dois primeiros anos de funcionamento da escola, o pastor Harder ainda continuava a dirigir a Associação Sul-rio-grandense. Por isso, muitas vezes, passava duas ou três semanas sem vir a casa, ou melhor, à Escola.. A tarefa de mamãe Harder era realmente bastante grande.
Por volta de 1931, o missionário passou seu posto a um sucessor e dedicou todo o seu tempo à nova instituição. Por essa época, o sr. Hugo Bergold deixou seu trabalho na Escola para dedicar-se a outras ocupações. Assim, a presença do pioneiro em seu colégio era imprescindível. Tendo se desligado de seu posto, o pastor Harder deixou de receber mensalmente o seu salário. Por isso, a única fonte mais segura de renda deixou de existir. Agora, era necessário tirar todo o lastro financeiro da própria instituição. Foi dado, então, um maior incremento à fábrica de laticínios. Começou-se também a criar abelhas para se ter mel para uso dos alunos e para ser vendido.
Já no segundo ano, foi necessário chamar um outro professor para auxiliar o professor Roth. Foi ele Donato Dornelles. Ele estudava e lecionava. Era um professor-aluno ou aluno-professor e fez um bom trabalho.
No final de 1931, alguns alunos saíram a colportar, tiveram êxito e puderam trazer algum dinheiro para custear suas despesas escolares. Isto foi providencial para o desenvolvimento da Instituição. Dificuldades, sempre existiam. Iam, porém, sendo vencidas com esforço e confiança em Deus. E Ele jamais faltou, mesmo nos momentos de grande e quase insuperáveis crises.
Alguns fatos notáveis aconteceram nos dois primeiros anos de funcionamento da escola. Um deles, foi a intervenção de um anjo num momento de crise. Uma crise de falta de alimentos. Certo dia, após servir o jantar, a sra. Harder disse ao esposo que não teriam mais alimentos suficientes para a refeição da manhã seguinte. Preocupado, sem ter o que fazer, o pioneiro foi em busca de orientação dos céus. Enquanto orava fervorosamente, um anjo apareceu ao seu lado e lhe disse:
"Não temas! Haverá alimentos suficientes até que a crise passe."
E assim foi. No outro dia, quando papai Harder veio tomar a sua refeição matinal, todos já se haviam alimentado, e nada faltou. Deus providenciou o necessário até que tudo voltou ao normal. Maravilhosos os caminhos do Senhor!
As dificuldades maiores, sobre as quais os alunos nada podiam fazer, não lhes eram contadas. Assim aconteceu nesse momento de falta de alimentos. Parece que papai Harder contou apenas aos filhos mais velhos Leon e Palmer. Os alunos foram dormir sem terem noção de que, no outro dia, nada teriam para comer. Todos notaram, porém, que o diretor estava preocupado e sua esposa também. No culto vespertino, ao orar, o pastor comoveu-se e sua voz ficou embargada. Cada um se dirigiu então aos seus aposentos , percebendo que alguma coisa não estava bem, mas sem saber exatamente o que era.
No dia seguinte, depois do milagre, tudo lhes foi contado com detalhes. O rosto do pioneiro estava como que iluminado por uma luz diferente. Foi então que, comovidos, todos cantaram juntos:
" Se paz a mais doce me deres gozar
Se dor a mais forte sofrer.
Oh, seja o que for, Tu me fazes saber
Que feliz com Jesus sempre sou.
. Sou feliz, com Jesus,
Sou feliz com
Jesus meu Senhor!"
Então, mamãe Harder orou com fervor, dando graças ao Senhor pela maravilhosa maneira como atendeu seus filhos num momento tão difícil.
O alimento, realmente, não faltou até que a crise passasse. Pouco a pouco, tudo foi melhorando. Pôde-se pagar dívidas antigas e tudo foi voltando ao normal.
Alguns comerciantes de Taquara foram bons amigos da Escola, fornecendo, muitas vezes, o que era necessário para ser pago quando houvesse dinheiro. A prefeitura colaborou também, isentando a Escola das taxas de energia elétrica por vários anos.
Em 1931, o professor Godofredo Ludwig e a família se uniram ao pessoal do Colégio. Eles vieram do Colégio de São Paulo e deram, por algum tempo, importante colaboração ao Colégio Cruzeiro do Sul. À medida em que a escola ia crescendo, outros professores uniram-se ao corpo docente, todos dando o seu melhor em favor da Escola que progredia e progredia...
Nos primeiros tempos, as reuniões religiosas eram assistidas na pequena igreja da cidade de Taquara. Sempre havia a participação dos alunos nas mensagens musicais e nas outras atividades. Com o correr do tempo, foi necessário organizar uma igreja na própria escola. Isto foi feito. Que alegria no dia da inauguração! Ela foi chamada " Igreja Adventista Cruzeiro do Sul", para se harmonizar com o nome do Colégio.
Pastor Harder, auxiliado por outros professores, liderou classes batismais a cada ano. Durante o tempo em que ele liderou a escola, 84 alunos foram batizados! Quando ele entregou a "sua" Escola à Associação, a Igreja Cruzeiro do Sul já estava com 150 membros!
Em 1932, realizou-se a primeira formatura. Pastor Harder parecia estar sonhando outra vez Eram os seus primeiros "filhos". Os primeiros frutos do abnegado trabalho de Abraham e de Mary Harder. Eram 10 alunos. Apenas 10! Mas que vitória! Que momentos de emoção, de alegria, de gratidão!
Com que seriedade, aqueles 10 jovens sentaram-se à frente, na igreja, naquele dia. As palavras ditas naqueles instantes, ficaram, para sempre, gravadas em seus corações! Formaram-se naquele memorável dia: Pedro Gonzalez, Paulo Gonzalez, Eugênio Weidle, Reinholdo Schuck, Paulo Rockel, Harry Bahr, Gustavo Bergold, Boni Renck, Henrique Bergold e Rosa Souza. Um bonito grupo. Um grupo pioneiro!
Os anos foram passando... foram passando. Cada vez, mais alunos e mais professores. Lutas, muitas lutas ainda, mas o pai do céu continuava a velar.
Em 1935, a Associação Sul-rio-grandense interessou-se pela Instituição e ofereceu-se para ajudar a administrá-la, o que foi prontamente aceito pelo casal Harder que teve, assim, sua responsabilidade e seus trabalhos aliviados. Por esta época, a família colegial interna era composta por umas 50 pessoas, mais ou menos. Dificuldades ainda existiam, mas eram enfrentadas com ânimo e confiança. Apesar das lutas, a família Cruzeiro do Sul era feliz!
Capítulo 3
Lutas e Vitórias
Durante os anos em que o pioneiro-fundador dirigiu a Escola de seus sonhos, houve vitórias maravilhosas, mas as lutas também foram grandes.. Não seria possível contá-las todas neste relicário. Há, porém, algumas que merecem ser citadas.
Em 1931 ou 1932, houve uma terrível praga de gafanhotos. O mundo ainda se refazia da grande depressão econômica de 1929 e 1930. O Brasil se ressentia do fato e isto se refletia também na titubeante economia da nova Escola.
A plantação estava bonita. Havia algumas espécies de cereais, legumes, mas a roça maior era a de milho. Com ela, far-se-ia farinha com a qual se poderiam preparar vários tipos de alimento: mingau, sopa, pão, biscoitos, etc. Foi quando apareceu uma nuvem de gafanhotos, tão densa, que cobriu , em parte, a luz do sol. Professores e alunos tentaram afugentá-los, mas foi uma luta inglória. Finalmente tiveram de correr para abrigar-se, sob pena de serem sufocados pelam imensidão dos insetos.
Naquele ano, plantaram o milho 7 vezes e, 7 vezes, os gafanhotos destruíram tudo. Tudo parecia escuro e aterrador. Se não conseguissem uma colheita boa, não teriam a tão preciosa farinha que lhes garantiria parte da alimentação por algum tempo. Como sempre, oraram a respeito. Na oitava tentativa, não houve gafanhotos. A colheita foi farta e a farinha de milho não faltou para a alimentação escolar.
Em outra ocasião, as chuvas foram muitas. O rio dos Sinos, que banhava as terras colegiais, saiu de seu leito inundando tudo. A casa em que a família Harder morava, foi tomada pelas águas. Cozinha e refeitório ainda funcionavam na casa da família. A residência teve de ser abandonada e os Harder foram alojar-se no dormitório masculino por mais de um mês. Ali, a sra. Harder improvisou uma cozinha. Os alunos eram servidos e cada um procurava um cantinho para tomar a sua refeição. Os rapazes iam a seus quartos e a as moças se acomodavam como podiam. Todos, porém, ainda davam graças porque nem todas as dependências foram tomadas pelas águas. Os dormitórios e o prédio de aulas foram preservados. Quando a família pôde voltar para a casa, muita coisa se havia estragado. A parte da cozinha e do refeitório teve de passar por uma boa limpeza. Não houve perda de alimentos, pois todos os víveres foram retirados antes que a enchente chegasse.
Num determinado ano, surgiu um problema muito sério. O mundo estava vivendo o período entre-guerras e, no Brasil, o serviço militar passou a ser obrigatório. Não havia exceção.
Embora na Escola houvesse muitos rapazes em idade de prestar esse compromisso obrigatório, ninguém viera ainda requisitá-los para tal. Em Taquara, não havia quartéis, mas a determinado momento, as autoridades resolveram criar um "Tiro de Guerra", uma espécie de extensão de um quartel, onde os moços poderiam receber a necessária instrução militar. A partir daí, o pastor Harder começou a preocupar-se. Sabia ele que, para que o Tiro de Guerra funcionasse, era necessário um determinado número de rapazes. Assim, ele tinha quase certeza que, mais dias, menos dias, seus alunos seriam chamados para cumprir as leis do governo. Como fariam em relação ao sábado? Ele começou a orar sobre o assunto e a aguardar.
Certo dia, um carro oficial adentrou o portão da Escola. Nele vinham vários oficiais militares. Foram levados ao escritório do diretor e logo expuseram o motivo da visita: os moços de mais de 18 anos deveriam freqüentar o Tiro de Guerra. Era a lei do governo. Além disso, eram necessários mais rapazes para completar a quota exigida para que o Tiro fosse realmente criado. O oficial mais graduado perguntou então ao pastor Harder:
"O que devemos fazer para contar com os seus moços a fim de que tenhamos o número necessário em nosso serviço militar?"
O pioneiro elevou uma prece silenciosa ao céu, pedindo que Deus o ajudasse a dar uma resposta acertada. Ele estava diante de uma decisão muito difícil e não queria tomar nenhuma atitude que pudesse pôr em risco o bom relacionamento da Escola com os militares, mas não queria também expor os rapazes a uma situação que envolvesse dramas de consciência. Então, o pastor Harder respondeu:
" Caros amigos, eu já esperava por esse pedido dos senhores. Estou pronto a atender-lhes se puderem..."
Imediatamente, o oficial o interrompeu:
"O que o senhor deseja?"
"Os senhores terão os meus rapazes no Tiro de Guerra, se lhes for permitido ter livre o tempo entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol do sábado. Eles poderão estar lá nos domingos e à noite, se for necessário. Mas durante as horas do sábado, que são sagradas, eles não poderão servir. Também entendo que não precisarão perder as aulas, pois seria muito ruim para eles".
"É só isso o que o senhor quer?" - perguntou o oficial
Diante da resposta positiva do pastor, o oficial sorriu e disse que estava tudo bem, que não haveria nenhum problema. Os rapazes não perderiam aulas e teriam completamente livres as horas do sábado.
O missionário, porém, conhecia bem os fatos e sabia que as coisas poderiam ficar diferentes, caso houvesse mudança de comando durante o tempo em que os alunos deveriam prestar o serviço militar. Ele passou ao oficial esta preocupação. O oficial, então, prometeu que tal coisa jamais aconteceria. Seriam tomadas medidas para que a liberdade do sábado fosse assegurada mesmo que ocorressem mudanças na direção do Tiro de Guerra.
Assim, os rapazes do Colégio Cruzeiro do Sul cumpriram o seu dever para com a pátria, sempre tendo o sábado livre. Não perderam nenhum dia de aula, pois iam à noite e aos domingos e, no final do ano, receberam , orgulhosos, suas carteiras de reservista.
Além de terem dado demonstração de civismo, estes "filhos do pastor Harder" , como eram conhecidos, deram exemplo magnífico de ordem, respeito aos superiores, responsabilidade e dedicação.
Capítulo 4
Assim era a vida...
Lar e escola... Escola e Lar! Era assim a vida nos primeiros anos do Colégio Cruzeiro do Sul. Os filhos adotivos se juntavam aos três rapazes Harder e eram todos irmãos. Não havia rivalidade entre estes e aqueles. Os filhos legítimos , com carinho, partilhavam mamãe e papai Harder com os outros "irmãos". Tal como numa família, por vezes, algum pequeno desentendimento surgia, mas todos se preocupavam em não permitir que o sol se pusesse sobre sua ira... Assim, os mal - entendidos eram, quase sempre resolvidos sem que os líderes precisassem intervir .
Vez por outra, havia necessidade de uma admoestação mais severa ou até mesmo de alguma punição. Os conselhos vinham sempre em primeiro lugar. Caso de castigo era muito raro. Os alunos eram tão agradecidos pela oportunidade de estar na Escola, que procuravam sempre fazer o seu melhor e aceitar qualquer incumbência que lhes fosse dada. Quando precisavam ser castigados, porém, o fato de ver a tristeza estampada no rosto do casal de missionários, era-lhes, talvez mais penoso do que o próprio castigo.
Que castigos se podiam dar naquela época? O mais comum era a perda de algum privilégio. Deixar de ficar , à tardinha, conversando com os diretores da escola e com os outros alunos; deixar de participar de alguma atividade social que, porventura houvesse... Mas a punição mais doída era aquela em que não era permitido ao faltoso sentar-se à mesa de refeições da família Harder. Isto acontecia sempre aos sábados. Dois ou três alunos eram convidados a partilhar das refeições com a família. Perder esta oportunidade, era realmente uma grande perda.
Durante a semana, sempre que podiam, papai e mamãe Harder sentavam-se apenas com os filhos. Eram esses os poucos momentos em que a família podia estar a sós e os pais aproveitavam para repartir com os filhos algum problema particular da família. Nos outros momentos, o tratamento era igual para todos, fossem os filhos de sangue fossem os filhos só do coração.
Quando havia necessidade de punir um faltoso, a tristeza caía sobre toda a família colegial, pois ver o semblante abatido e triste do pioneiro e de sua esposa magoava a todos. Dificilmente, o faltoso caía em erro outra vez.
Os cultos de sexta-feira à noite e de sábado eram muito especiais. Quando o pastor Harder não estava presente, a missionária ou Mathilde dirigiam os trabalhos. Nos finais de semana, por vezes, algum visitante era convidado a dirigir a reunião.
Já na quinta-feira, à noite, a sra. Harder perguntava a cada um se a sua roupa estava pronta para o sábado. Apesar de a maioria ter roupas muito humildes, ela fazia questão de que estivessem limpas e bem passadas. Mesmo que tivessem algum remendo, tinham que estar com aparência diferente para o sábado. Muitas vezes, as roupas eram tingidas para que ficassem com melhor apresentação e durassem mais.
Na sexta-feira à tardinha, os grupos iam-se juntando nas proximidades da sala que servia de refeitório e se punham a cantar. Às vezes, a sra. Harder vinha da cozinha com as moças e todos cantavam juntos. Quando o tempo permitia, o culto de pôr do sol era, muitas vezes, realizado ao ar livre. Outras vezes, todos entravam cantando no salão e ali o culto continuava. Havia muitos hinos pelos quais os alunos tinham predileção:
" Desce o sol atrás dos montes", "A semana já passou", " Quero estar ao pé da cruz" etc. Os alunos cantavam com vigor. Um contralto, um tenor ou baixo eram improvisados e de pronto havia um coral a louvar ao Senhor. Mamãe Harder, certa feita, ensinou-lhes um hino que não havia ainda no hinário da época. Certamente, alguém o traduziu para ela. O hino falava sobre as bênçãos do sábado. Tudo leva a crer que fosse o hino que diz" Horas benditas, santas e felizes", que está no Hinário Adventista com o número 531. Os alunos o aprenderam com prazer e cantavam-no em todos os cultos de pôr do sol, na entrada do sábado.
Mais tarde, foi conseguido um velho harmônio, então a missionária tocava nele os hinos enquanto os alunos cantavam . Era dada a oportunidade de os alunos escolherem os hinos que desejavam cantar. Escolhas eram feitas, mas sempre havia alguém que pedia os hinos prediletos do casal. Pastor Harder, entre muitos, tinha predileção por " Da linda pátria estou bem longe". Este, era então bastante cantado. Já o predileto da sra. Harder, provavelmente era "Sou feliz com Jesus, meu Senhor." Sempre cantado também.
Após os hinos, havia o momento dos testemunhos. Os alunos eram incentivados a agradecer a Deus, em público, pelas muitas bênçãos recebidas.
De vez em quando, o prof. Roth trazia o seu violino e acompanhava os hinos "arranhando", como ele mesmo costumava dizer. Os cultos eram momentos realmente felizes.
Nos primeiros tempos, as reuniões de sábado eram realizadas na Escola. Um pouco depois, a família colegial passou a freqüentar a igreja da cidade de Taquara. As meninas percorriam os três quilômetros de carroça e os rapazes iam a pé. Todos felizes e contentes Sempre que eram solicitados, os alunos participavam das reuniões, especialmente da Escola Sabatina.
Mamãe Harder gostava de cantar. Muitas vezes, ela cantava em inglês. Por vezes, formava-se um estranho conjunto. Ela cantando na sua língua pátria e as meninas, em português. Ela dizia sempre que Deus entendia bem e aceitava o louvor.
Não era raro haver pouco ou quase nada para cozinhar. Ela, porém, fazia questão de que mesmo que houvesse um único prato, este deveria ser o mais saboroso e o mais saudável possível.
Quando o trabalho diminuía um pouquinho, mamãe Harder gostava de conversar com os alunos. Geralmente, conversava mais com as meninas, pois estas estavam por ali mesmo, pela cozinha. Gostava de contar fatos de sua juventude. De seus tempos de aluna no colégio. De seu namoro, de seu casamento. As meninas ouviam com muito interesse. Os olhos da pioneira brilhavam quando ela falava do velho sonho que sempre a embalara: o de ser uma missionária.. Dizia que ter contribuído para a criação do Colégio era a sua maior alegria, embora as incompreensões e as dificuldades tivessem sido muitas.
Era raro acontecer, mas havia ocasiões em que um véu de mágoa e preocupação toldava o seu rosto. Se alguém lhe perguntava o que estava acontecendo, ela dizia:
"Parece que me esqueci de que o Senhor é o meu pastor". - Então se punha a cantar em inglês, em português, ou misturando os dois idiomas:
" Oh, não consintas tristezas, dentro do teu coração...
Tendo fé firme no Mestre, segue-O sem hesitação."
Para o sábado, ela sempre procurava fazer aluga guloseima especial, para o café ou para o almoço. Às vezes, era um bolo de fubá grosso muito apreciado pelos alunos. Havia também uma salada colorida de vários vegetais, cortados de formas interessantes: rodelinhas, estrelas, quadrados, etc. Estes eram arrumados com arte nas travessas dando um aspecto especial às mesas. Sempre que possível, havia sobremesa. Não era fácil ter-se sobremesa naquela época, por isso, quando isto acontecia, era uma verdadeira festa!
Pastor Harder era um educador de primeira, como já o havia sido o seu pai. À primeira vista, seu semblante sério e sua voz grossa podiam até dar a impressão de que era um homem de pouca conversa. Mas, depois de um tempo ao seu lado, a impressão de desvanecia. Era severo, sim, quando a situação assim o exigia. Mas era justo e bom. Gostava de cantar e de assobiar enquanto trabalhava. Dizia que isto tornava a tarefa mais fácil e agradável. Se via um aluno entristecido, dizia-lhe que cantasse. Costumava falar que o simples fato de a Escola existir já era um milagre, por isso, deviam confiar sempre em Deus. Orar e cantar eram sua maneira de mostrar ao Senhor quão grato era pelas bênçãos recebidas.
Muitas vezes, dividia com os alunos as suas preocupações, a fim de ( como dizia) aumentar neles a confiança em Deus, porque, por mais difíceis que os problemas parecessem, sempre o Pai do céu dava um jeito e tudo ficava bem novamente.
Quando um aluno vinha conversar com ele, espontaneamente, ou a seu chamado, antes de qualquer outra coisa, ele orava com o moço ou com a moça. Isto desfazia qualquer rancor que, porventura, houvesse. Suas orações eram cheias de fé e ninguém tinha dúvidas de que chegariam ao trono do céu.
Um aluno, certo dia, estava desanimado. Tinha muitas dificuldades financeiras e também alguma dificuldade nos estudos. Pensava deixar o colégio e voltar para a roça de onde viera. Foi então conversar com o diretor. Disse-lhe o sr. Harder:
" Onde está a tua fé? Por que fraquejar?" - Então, pôs-se a cantar com a sua voz grossa:
" Oh, sim eu sei, Jesus bem vê, o que eu estou a sofrer..."
Depois, orou com o moço. Disse-lhe palavras de ânimo. Infundiu-lhe confiança na providência di-vina. O moço ficou. Lutou muito, é verdade. Mas venceu as dificuldades. Mais tarde, tornou-se um fiel obreiro do Senhor.
" Papai Harder e mamãe Harder eram verdadeiros enviados de Deus. Dou graças ao Senhor por ter tido o privilégio de conviver com eles." Estas são as palavras textuais daquele moço que, um dia, sentiu o desânimo desaparecer com os conselhos e as orações do homem de Deus chamado Abraham.
A maioria dos primeiros alunos era proveniente do interior do estado, das grotas mais distantes, conforme eles mesmos diziam. Isto se explica pelo fato de a Escola só dispor de trabalhos rurais, trabalhos de agricultura e pecuária. Assim, como quase todos dependiam apenas do trabalho para custear as despesas, necessário era que soubessem as lides campeiras. Os Harder, com muito tato e carinho, iam polindo aquelas pedras brutas, mas que já demonstravam o valor que poderiam ter depois de lapidadas.
Alguns fatos chegavam a ser engraçados até. Certo aluno veio de um dos pontos mais atrasados do Rio Grande do Sul, segundo seu próprio relato. Quase não falava a língua portuguesa, já que em casa, a família se comunicava em alemão. Não sabia vestir-se direito, não tinha nenhum trato social. Acostumado a lidar com animais, por vezes, não conseguia se comunicar com as pessoas.
Os missionários, desde o princípio, viram naquele moço, de faces avermelhadas, vendendo saúde uma pérola de grande preço que precisava ser polida. A tarefa não seria fácil, eles bem o sabiam. Aproveitavam-se, porém, de cada oportunidade para ir mudando o jeitão bronco daquele moço.
Um dia, um dos colegas de quarto do moço recebeu uma carta. Depois de lê-la, deixou-a sobre a mesa. O nosso rapaz, então, na sua ingenuidade, tomou a carta e a leu. Posteriormente, inocentemente, comentou o fato com papai Harder. Só então, ficou sabendo que tal coisa não de fazia. Que ler correspondência de outros era algo que uma pessoa educada não fazia, a menos que o dono da carta, voluntariamente, quisesse que o colega a lesse. O moço aprendeu aquela lição, como muitas outras que lhe foram ensinadas e não mais as esqueceu. Eis suas palavras:
"Devo muito do que cheguei a ser àqueles primeiros ensinamentos que me foram dados por aquele casal de servos de Deus. Quero revê-los no céu".
As atividades sociais eram sempre bem-vindas. Aos sábados à noite, os alunos se reuniam e havia entre eles um entrosamento saudável. Geralmente, ficavam todos assentados, formando uma roda e então brincavam de "minha direita está vaga", " que fruta sou eu?", " quem saiu da roda?" etc. Não havia brincadeiras barulhentas ou aquelas que propiciavam que rapazes e moças se dessem as mãos. Eram, porém, muito divertidas e os alunos gostavam muito.
Quando se prenunciava algum namoro, o caso tinha de ser muito bem estudado, antes que o casal recebesse sinal verde para ter, de vez em quando, algum momento de conversa. Se por uma razão qualquer, o casal de namorados, incidentalmente, passasse um pelo outro durante as atividades do dia, era recomendado à moça baixar a cabeça e só levantar os olhos depois que o namorado houvesse passado. Papai Harder dizia:
" Vocês estão aqui para estudar, não para namorar. Como vão pensar em casar sem ter o necessário preparo para a vida?"
Mesmo assim, os namoros eram inevitáveis, mesmo porque os alunos já não eram mais crianças. O Rio Grande do Sul e o Brasil tiveram a colaboração de muitos casais de obreiros cujo início de vida se deu no Colégio Cruzeiro do Sul. Papai Harder teve o prazer de realizar muitos casamentos.
Os piqueniques eram outra maneira agradável de os alunos se recrearem. Naquela época, dizia-se "convescote". Quando se prenunciava um convescote, todos ficavam muito felizes. Quase sempre, estes eram realizados no terreno da Escola, à beira do rio Santa Maria ( Paranhana). Alguma vez, iam passar o dia num outro lugar aprazível que não ficasse muito distante.
Cantavam-se canções folclóricas e havia uma troca de ensinamentos. Os alunos ensinavam aos pioneiros canções do Brasil e estes, por sua vez, tentavam ensinar a seus pupilos alguma canção em inglês. Isto era realmente difícil! Se nem sabiam cantar bem em português, como iam fazê-lo em inglês?
À medida que outros professores iam-se unindo à família colegial, as atividades sociais se diversificavam. O pastor Harder, porém, sempre aproveitava a oportunidade de, nos piqueniques, ensinar aos alunos lições práticas sobre a natureza. Ensinava-lhes também sobre os cuidados que deviam ter ao caminhar pelo mato, ao atravessar o rio, etc.
Os banhos no rio eram terminantemente proibidos. Se por uma razão qualquer, havia necessidade de atravessá-lo, era escolhido alguém que tivesse bastante experiência. Mas o banho de rio jamais era permitido. Alguma desobediência a este regulamento, poderia determinar ao aluno a perda de seu lugar na escola. Mesmo assim, em determinado dia, umas meninas se aventuraram rio adentro e uma delas morreu afogada. Foi um acontecimento muito triste! Contudo foi uma lição de vida para os alunos. Eles aprenderam que, ao proibir o banho no rio, papai Harder estava protegendo suas vidas.
Algumas vezes, poucas é verdade, foi necessário desligar um aluno da Escola. Os regulamentos eram severos, deviam ser obedecidos. As leis nacionais eram muito rígidas com relação a internatos onde estivessem moças e rapazes. Assim, tudo tinha de ser muito bem estruturado para evitar problemas. Quando tal fato acontecia, os sinais da tristeza transpareciam no semblante do casal Harder. Não raro, na hora dos cultos, quando orava, o missionário mencionava o nome do ex-aluno e, nesse momento, a sua voz ficava trêmula. Por vezes, ele comentava com os outros estudantes os fatos acontecidos e aproveitava para lhes falar a respeito dos deveres dos alunos do Colégio Cruzeiro do Sul.
E era assim a vida naqueles primeiros tempos. Difíceis, mas felizes tempos. Uma vida carregada de lutas, repleta, porém de alegrias e realizações.
Os fatos aqui relatados ocorreram, quase na sua totalidade, nos primeiros três anos de funcionamento da Escola. À proporção que o Colégio foi crescendo, algumas coisas foram mudando para se adaptarem às novas necessidades.
E era assim a vida naqueles primeiros tempos. Difíceis, mas felizes tempos. Uma vida carregada de lutas, repleta, porém de alegrias e realizações.
Capítulo 5
Alguns fatos pitorescos dos primeiros anos
1. A doença do cavalo Chico
Chico era o cavalo que puxava a carroça, único meio de transporte do Colégio Cruzeiro do Sul, nos seus inícios. A carroça buscava os alimentos na cidade, levava algum aluno doente ao médico, servia de "táxi" para quem precisasse ir à estação de trem. O mais importante, porém, é que ela era usada para levar à cidade os produtos que a Escola vendia para conseguir algum dinheiro. Assim, duas ou três vezes por semana, os filhos do pastor Harder e outros alunos iam à cidade levar queijo, manteiga, ovos, nata, verduras e, com isso, algum dinheiro sempre aparecia para as necessidades mais prementes.
Normalmente, a sra. Harder ia, uma vez por semana, comprar alguma coisa na cidade. Quando isto acontecia, já na véspera, os alunos lavavam a carroça com cuidado e procuravam deixar o Chico com o pêlo bem limpo, bonito e brilhante. Jamais desejariam que mamãe Harder passasse algum vexame com o cavalo ou com a carroça.
O casal Harder costumava dizer que o Chico era como um membro da família, porque todos depen-diam muito dele. Por isso, toda a família colegial tinha muito carinho para com ele. Nas sextas-feiras à tarde, quando o pastor Harder podia vir para casa, todos os rapazes disputavam o privilégio de ir, com o Chico e a carroça, tinindo de limpos, buscá-lo na estação de trem.
Certo dia, o cavalo amanheceu indisposto. O aluno que foi tratar dele de manhã, notou que ele estava desanimado. Atrelou-o à carroça, mas nada aconteceu. O Chico não queria sair do lugar. O aluno fez algumas tentativas, mas nada funcionou. Foi chamado o sr. Hugo Bergold, que cuidava das plantações, porém ele não sabia o que estava acontecendo. Comunicaram, então, o fato à sra. Harder. Ela e Mathilde Köhler tentaram descobrir o que o cavalo tinha, mas foi tudo em vão.
Veterinário? Só em Porto Alegre ou Novo Hamburgo, portanto, isto estava fora de cogitações. Papai Harder andava viajando pelo Campo gaúcho, e nem se sabia a data exata de sua volta.
A missionária disse aos alunos que deixassem o Chico descansar aquele dia. Quem sabe, na manhã seguinte, ele estaria melhor. Na manhã seguinte, porém, o animal não tinha melhorado. Nem sequer se levantou de onde estava deitado e não quis nem água e nem comida. Agora, mamãe Harder também começou a ficar preocupada. Se o Chico morresse, eles não teriam outro animal para as lides domésticas. Ela, então, preparou um chá com várias ervas e resolveu dá-lo ao Chico. Não foi fácil. Alguns rapazes o seguraram, outros abriram sua boca e a sra. Harder e Mathilde despejaram o chá, goela abaixo, no Chico.
Na hora do culto, aquela noite, a pioneira falou aos alunos de sua preocupação. De manhã, o cavalo estava na mesma. Os alunos, entre si, já cogitavam da possibilidade de o Chico morrer. A maior preocupação era com mamãe Harder. Como iria ela fazer as compras costumeiras? Quanto aos produtos para vender, não havia nenhum problema. Eles poderiam ir a pé para vendê-los. Afinal, a cidade nem era tão longe!
Três ou quatro dias se passaram e nada de o Chico melhorar. Um grupinho de alunos, então, tomou uma decisão. Se, como o pastor Harder dizia, o Chico era uma espécie de membro da família já que tantos dependiam dele, por que não insistir com Deus para que o curasse? O Senhor sabia o quanto o animal era necessário para a Escola que já enfrentava tantas dificuldades. Verdade que já estavam orando sobre isto. Mas, resolveram fazê-lo com mais intensidade.
Assim, naquela noite, depois que todos foram dormir, um grupo se levantou de mansinho e foi para a cocheira do Chico. Ali, cantaram baixinho hinos de fé, oraram, leram trechos da Bíblia e oraram de novo. Oraram muito e com muita fé. Contaram ao Senhor as suas preocupações. Muitos deles conseguiam pagar suas despesas trabalhando e dependiam do Chico para vender os produtos que conseguiam na horta, nos galinheiros, ou na fábrica de queijo e manteiga. O Senhor sabia também o quanto mamãe Harder precisava da carroça que o Chico puxava. Suplicaram ao Pai do céu que restaurasse o Chico e o mantivesse forte pelo menos até que pudessem ter um outro animal para substituí-lo. Foram fervorosos em seus pedidos. Quando o dia já vinha raiando, foram para seus aposentos descansar um pouquinho.
Logo pela manhã, quando o sr. Hugo Bergold foi olhar o cavalo, notou que ele apresentava sinais de melhora. Mamãe Harder foi chamada e constatou a mesma coisa. Pediu a Mathilde que trouxesse algum alimento especial. Que alegria! O cavalo comeu tudo! Em poucos dias, ele estava lépido de novo. As compras puderam ser feitas, os produtos puderam ser vendidos e, quando papai Harder chegou, a carroça estava limpinha e o Chico tinindo de bonito para buscá-lo na estação.
Os alunos que participaram daquela vigília em favor do cavalo, tiveram sua fé fortalecida. Ficaram seguros de que Deus cuida de seus filhos mesmo quando se trata de curar um animal. O Chico foi o animal da Escola por muitos anos, mesmo quando seus serviços já não eram tão necessários e ele podia ficar sossegado. Morreu de velho!
2. O caso da goiabada queimada
Muitas das moças que estavam no internato também pagavam suas despesas escolares com trabalho. Elas ajudavam a Sra. Harder e Mathilde Köhler nos trabalhos domésticos, e por vezes, também trabalhavam na lavoura. Elas não eram muitas. Havia muita amizade entre elas. Consideravam-se como irmãs, o mesmo ocorrendo em relação aos rapazes. Procuravam ajudar-se mutuamente e quando uma estava sobrecarregada, sempre havia uma colega pronta a dar uma mãozinha.
Tanto a Sra. Harder quanto Mathilde eram ótimas professoras da arte de cuidar de uma casa, cozinhar, costurar etc. Antes de se exigir de alguém algum serviço, este era cuidadosamente explicado e sempre havia ajuda quando fosse necessária . As moças faziam os trabalhos com dedicação, o que não impedia que, por vezes, alguma coisa saísse errada.
Certo dia, os rapazes colheram, no pomar, muitas goiabas para que delas fosse feita uma gostosa goiabada. O doce era feito de duas maneiras: tipo geléia, para se passar no pão e tipo cascão para ser degustada com o queijo Alegria. ( Dois tipos de queijo eram fabricados e vendidos: o Cruzeiro do Sul, mais caro, e o Alegria , mais barato.) Geralmente, aos sábados, a sobremesa era goiabada com queijo Alegria. Não havia quem não apreciasse tal sobremesa.
As goiabas foram descascadas e preparadas para serem cozidas. O cozimento das frutas exigia muito cuidado. Era necessário que a massa fosse mexida constantemente para não se queimar. Alguns rapazes arrumaram tijolos no quintal e ali foi aceso o fogo para cozinhar as goiabas. Uma aluna foi designada para cuidar do fogo e do tacho onde estava se cozinhando o doce. Mamãe Harder e Mathilde foram cuidar de outros afazeres. A moça que deveria mexer o doce no tacho, sem parar, resolveu sair um pouquinho para conversar com alguém. Ela imaginou que um instantinho só não faria nenhuma diferença.
Quando voltou... que surpresa ruim! O vapor que saía do tacho não tinha mais o gostoso cheiro de goiaba. Tinha cheiro de algo queimado... bem queimado. Quando ela passou a pá no fundo do tacho, percebeu que uma camada negra se formara ali. Ela se pôs a chorar. Algumas colegas vieram em seu socorro, porém ninguém sabia como resolver o problema. O que fazer? Chamar mamãe Harder e contar-lhe o resultado de seu descuido era a única solução.
Alguém saiu à procura. Não lhe contou, porém porque a moça chorava. A Sra. Harder quis saber da moça o que havia acontecido. Esta, aos prantos, contou-lhe de seu descuido e pediu perdão. Na sua angústia, ela pedia:
" Por favor, mamãe Harder, faça alguma coisa. Como é que eu vou encarar os meus colegas? Sei que fui descuidada e mereço ser castigada, mas não queria meus colegas ficassem sem o tão esperado doce de goiaba. Todos o estão esperando para saboreá-lo com o queijo Alegria! Eles não vão me perdoar! Por favor, eu sei que a senhora pode fazer algo para corrigi o que eu fiz. Ajude- me!"
A sra. Harder lhe disse que ela realmente fizera algo muito lamentável, traíra a confiança nela depositada, mas já estava suficientemente castigada. Não haveria outro castigo por aquela ação descuidada. Então, contou à moça que, certa vez, o povo de Israel estava precisando de água quando viajava pelo deserto. Encontraram uma fonte, mas a água tinha gosto ruim. Moisés orara ao Senhor e depois colocara na fonte uns pedaços de madeira O gosto ruim das águas desapareceu. Quem sabe, agora o Senhor poderá também resolver o problema do gosto ruim da goiabada queimada. E acrescentou:
" Algo errado aconteceu hoje aqui. Alguém não fez o seu trabalho direito e agora estamos com um sério problema. Sei que a culpada está arrependida e será perdoada. O Senhor sabe que precisamos desta goiabada e que gastamos, para fazê-la uma parte do nosso precioso açúcar. Quem sabe se orarmos a respeito, Ele não nos dará uma solução"
E assim foi. As duas e mais Mathilde e outras moças oraram. A culpada assumiu sua responsabilidade diante de Deus e pediu-Lhe perdão. Esperaram aquela massa esfriar, tiraram-na do tacho e a moça culpada gastou bons momentos lavando aquele tacho queimado. Depois, recolocaram o doce de volta Antes de o colocarem ao fogo, a Sra. Harder foi até sua horta e trouxe de lá algumas ervas aromáticas, usadas para chás, e colocou-as a cozer junto com a goiabada. Desta vez, a moça não se descuidou um só momento. Depois de pronto o doce, que alegria! Não havia nenhum gosto de queimado. Os alunos o comeram com o queijo Alegria e com muita alegria!
Na hora do culto, a moça fez questão de relatar aos colegas tudo o que havia acontecido. Mais uma vez todos compreenderam quão bom era o Senhor. Mostrara o Seu amor até mesmo através de uma goiabada queimada!
3. Pastor Harder e o aluno faltoso
Nos primeiros anos, não havia muitas acomodações para todos. Na verdade, nesses tempos, os alunos internos (só rapazes) tinham seus alojamentos na própria casa da família. Tudo era muito difícil e o dinheiro era pouco. A alimentação era saudável, todos comiam com fartura, mas o casal Harder não permitia desperdício ou queixa com a relação aos tipos de alimentos servidos. Ele sempre dizia que Deus lhes enviara este ou aquele alimento e que todos deveriam participar deles com alegria e gratidão.
Em determinada época, não havia muita variedade na alimentação. A horta produzira pouco, tinha havido muito geada e os alimentos, especialmente frutas e verduras, estavam muito caros. Mathilde, a dedicada auxiliar, tentava inventar pratos novos com aquilo de que dispunham, mas nem sempre lograva êxito. Em algumas refeições o alimento realmente não era muito convidativo. Todos partilhavam dele, porém, sem dizer nada, sabendo que ali estava tudo o que tinham no momento.
Houve um dia em que, para a alimentação da noite, só havia uma sopa um tanto rala. Mas havia pão, leite, queijo e até goiabada. Todos estavam comendo tranqüilos. De repente, um aluno se levantou, empurrou a cadeira e disse:
"Esta sopa nem parece comida. Está horrível! Será que não havia outras coisas para se fazer uma sopa? Eu é que não vou comer esta droga de comida!"
Então, levantou-se empurrou a cadeira e foi em direção da porta de saída, sem dar satisfações a ninguém e sem olhar para trás.
Os alunos se entreolharam, mas ninguém disse nada. O pastor Harder que, nessa noite, estava em casa, levantou-se, dirigiu-se ao aluno e com voz calma, mas cheia de autoridade, pediu-lhe que voltasse para o seu lugar. O rapaz fez de conta que não ouviu e retirou-se da sala de refeições. Pastor Harder não disse nada e voltou para o seu lugar. Os outros alunos ficaram preocupados. O colega não era mau rapaz, mas, às vezes, perdia o senso de bons modos. Por certo, agora o colega seria mandado embora. Logo ele, que ia tão bem nos estudos!
Fizeram o culto, foram estudar e em seguida todos se prepararam para dormir. O aluno faltoso não apareceu até o momento em que deveria haver silêncio absoluto na casa. Seus colegas, preocupados, não conseguiam pegar no sono. Um deles, mais agitado, algum tempo depois, levantou-se e na ponta dos pés, abriu com cuidado a porta e saiu para o pátio.
Foi a vários lugares onde talvez pudesse achar o colega faltoso. Depois de muito procurar, encontrou-o num velho celeiro, onde se guardavam coisas para serem consertadas. Ele também não estava dormindo. Os dois conversaram. O faltoso disse ao colega que pela manhã pegaria suas coisas e iria embora antes que o mandassem. No entanto, ele estava arrependido do que fizera. Nem mesmo sabia explicar como tal coisa pudera acontecer.
O colega lhe disse que pedisse desculpas ao pastor Harder e por certo, o perdão lhe seria dado mesmo que fosse seguido de um castigo. Mas o moço estava envergonhado. Disse que não teria coragem de olhar para o rosto de papai ou de mamãe Harder. Sua falta havia sido muito grave. Especialmente por não ter atendido à ordem de voltar que o pastor lhe dera. O colega, então, insistiu para que ele viesse para dentro de casa, já que a noite estava fria e ali não havia nenhum agasalho para ele. Pela manhã, ele resolveria o que fazer.
Depois de muita insistência, o aluno faltoso concordou e ambos voltaram para casa. Quando já estavam se aproximando, perceberam que alguém estava saindo pela porta da frente. Era o pastor Harder. Os alunos gelaram! Agora eram dois os faltosos, já que sair de casa depois do horário de silêncio não era permitido. O primeiro quis voltar, mas o colega não permitiu. Ele tinha explicações para dar e tinha certeza de que o sr. Harder compreenderia. Engraçado! O diretor não veio para onde estavam os moços. Não os vira. Ele foi para dentro de um pequeno bosque e desapareceu. Os rapazes, agora curiosos, vieram pé-ante-pé para ver o que estava acontecendo. À medida que se aproximavam, começaram a ouvir a voz do pastor Harder. Que hora estranha para conversar com alguém! Ao se aproximarem mais, perceberam que o pioneiro estava orando. Entre outras palavras, ele pedia a Deus por aquele aluno que o desrespeitara naquela noite. Era como se ele estivesse dividindo com Deus suas angústias e seus problemas. Pedia ao Senhor que perdoasse ao moço e que lhe desse sabedoria para saber como lidar com aquele caso. Mencionou que o rapaz tinha tudo para ser um servo de valor, e que por certo, o seria se o Senhor o ajudasse a vencer o gênio um tanto explosivo que, por vezes, ainda levava o aluno a atitudes como a daquela noite.
Nesse momento, o aluno faltoso correu e ajoelhou-se ao lado do sr. Harder e pôs a mão no seu ombro. No exato momento em que o pastor terminou a oração, ele começou a orar pedindo a Deus perdão pelo erro daquela noite. Quando se levantaram, ambos se abraçaram, o moço pediu perdão humildemente e foi perdoado.
No outro dia, ele fez questão de contar aos colegas tudo o que havia acontecido. Cumpriu o seu castigo com alegria e gratidão. Aquele episódio só fez com que os alunos mais admirassem e respeitassem o diretor da Escola. O moço faltoso? Ficou na Escola até estar preparado para ir a São Paulo de onde voltou pronto para ser um obreiro de valor como o querido pioneiro havia predito!
4. O caso da camisa nova
Não sabemos exatamente o ano. 1929, 1930... Não importa. Foi nos primeiros anos de funcionamento da Escola Cruzeiro do Sul. Quase todos os alunos eram muito pobres. Alguns vinham para cá praticamente só com a roupa do corpo.Sendo assim, a Sra. Harder e sua fiel auxiliar Mathilde Köhler, muitas vezes, passavam horas e horas remendando roupas: calças, camisas, meias, etc Em algumas ocasiões, a roupa ficava com tanto remendo que chegava a ser engraçado. Mas ninguém se importava e ficavam felizes porque alguém se preocupava em arrumar as suas roupas.
Certa noite, já era bem tarde e a Sra. Harder ainda estava consertando algumas roupas. Ela cantarolava enquanto fazia isto. O resto do pessoal já se havia ido deitar. Era uma noite fria. Ela estava sentada perto do fogão a lenha.
De repente, ela percebeu que alguém se aproximava, meio temeroso. Era um aluno muito bom, mas muito pobre. A Sra. Harder, carinhosamente perguntou-lhe o que queria. Ele, bastante acanhado, disse-lhe que, no sábado seguinte, teria de contar a carta missionária na igreja. Havia, porém, um problema: sua camisa melhor estava com o colarinho todo puído. Já havia sido consertado várias vezes, e agora não havia mais maneira de consertar.
A Sra. Harder disse-lhe que não se preocupasse, que ela iria dar um jeito. O rapaz retirou-se satisfeito. No mesmo momento, a pioneira foi à procura de sua auxiliar. Vez por outra, vinham dos Estados Unidos alguns metros de tecido com os quais se fazia alguma roupa para os alunos necessitados. Quando a Sra. Harder falou com Mathilde, esta lhe disse que não havia mais tecido, pois ela tinha usado o último pedaço para fazer calças par um aluno que delas precisava.
No outro dia, mamãe Harder e Mathilde tomaram uns sacos de farinha, lavaram, alvejaram-no ao sol. Depois o tingiram e foi feita uma camisa para o moço que iria participar da Escola Sabatina contando a carta missionária. Nos sábado, lá estava ele, feliz, louvando ao Senhor por tê-lo trazido a esta Escola, onde havia alguém tão especial como a Sra. Harder. Ou melhor, mamãe Harder!
5. Difícil de aprender
Dentre os primeiros alunos que vinham à Escola Cruzeiro do Sul, havia muitos que mal sabiam ler. Muitos eram oriundos de lugares tão remotos aonde era difícil chegar, e nem se ouvira, por lá, falar em professor. Assim, nem sempre era fácil aprender as lições que eram ensinadas. Ao contrário, para alguns, era até muito difícil! Por vezes, as dificuldades eram tantas que o aluno chegava a pensar em desistir e alguns desistiam mesmo e voltavam para casa. A maior parte, porém, lutava, lutava e pouco a pouco, ia- se ajeitando com os livros, os cadernos e as lições.
Prof. Roth era bastante paciente e amigo. Era humano, porém, e, às vezes, quase perdia a paciência com um ou outro aluno. Normalmente, após esses momentos de pequena impaciência, o professor retornava à serenidade e se desdobrava em favor do aluno que apresentava grandes dificuldades.
Havia, na Escola, um moço que viera de um local muito distante, com um nome muito estranho e que, por mais que se procurasse no mapa, tal lugar não era encontrado. Esse moço falava tão errado, a ponto de , por vezes, não ser possível entender o que ele dizia. Quando lhe foi perguntado se sabia ler, ele respondeu afirmativamente.
Na primeira aula a que assistiu, o moço ficou muito quieto. Não conversou com ninguém e mal respondeu ao que o professor lhe perguntou. Na hora de escrever, o prof. observou que ele ficava riscando, riscando, mas parecia não escrever nada. A olhar seu caderno, o professor percebeu que ele apenas copiava as palavras em letra de imprensa, tal como estavam escritas no livro.
Após o término das aulas, o prof. Ernesto Roth pediu ao aluno que ficasse um pouquinho para conversarem. O professor fez-lhe algumas perguntas e insistiu em saber se ele realmente sabia ler. Mais uma vez, ele insistiu que sabia. O professor, então, tomou o livro, apontou o título: "A chuva" e pediu-lhe que lesse. Então, o aluno começou :
"C...h...u...v...a."
O professor apontou outra palavra. O aluno "leu" do mesmo jeito, apenas pronunciando o nome de cada letra. Era assim que ele sabia ler... mencionado o nome de cada letra. Para escrever, era a mesma coisa. Ele copiava o que estava escrito, mas não sabia ler as palavras. E agora, o que fazer?
Naquela noite, o professor trocou idéias com a senhora Harder. Papai Harder estava viajando e demoraria alguns dias até voltar para casa. Cabia a eles dois a decisão. Não havia estrutura para que se ficasse com um aluno que não era alfabetizado. Não havia quem pudesse ensinar-lhe em outro momento porque todos tinham de trabalhar e trabalhar muito! O rapaz, desesperado, não queria deixar a Escola que já amava e considerava seu lar.
Ele foi conversar com mamãe Harder. Disse-lhe que não sabia que ler era algo diferente daquilo que ele aprendera. Mas ele tinha certeza de que poderia aprender a ler corretamente. Se lhe dessem uma chance, estava certo de poder em breve acompanhar a turma. Não se importaria de ficar mais anos no colégio, se preciso fosse, queria, porém, aprender muito para ser alguém na vida e poder também trabalhar para o Senhor.
Era um caso totalmente novo. Um dos requisitos para ser admitido na Escola era, pelo menos, saber ler e escrever o mínimo necessário.
Tudo isto foi dito ao moço, mas nada o consolava. Disseram-lhe que voltasse para casa e aprendes-se a ler e a escrever durante aquele ano e voltasse no ano seguinte. Na sua região, não havia escola, disse ele à missionária, com súplicas e lágrimas nos olhos.
Não era fácil tomar uma resolução. Se fosse aberta essa exceção, apareceriam muitos mais alunos sem saber ler. Como poderiam alfabetizar a todos? Por outro lado, ali estava, quem sabe, um rapaz promissor que só precisava de uma oportunidade.
Mamãe Harder disse ao moço que fosse para o quarto e a procurasse mais tarde. Como era seu costume, quando tudo parecia sem solução , a missionária foi buscar conselho e orientação com o Pai celestial. Convidou Mathilde e algumas moças para acompanharem-na nesses momentos de oração. Elas estiveram orando por algum tempo. Depois que terminaram, Mamãe Harder foi conversar com o professor. Juntos acharam que poderiam deixar o rapaz ficar na Escola. Alguns colegas poderiam revezar-se no auxílio a ele. Não seria nada fácil, mas provavelmente, com a ajuda de Deus, eles haveriam de conseguir. Vale lembrar que o moço já não era nenhum juvenil. Há muito, tinha passado dos 18!
Assim começou a luta do jovem que não sabia ler nem escrever... Arranjaram-lhe uma cartilha, ou melhor, uma "Carta do abc" , como se dizia na época e começou a maratona. Os colegas todos queriam ajudar e ajudavam... Acontece que ninguém dispunha de muito tempo e o rapaz não tinha tanta facilidade assim para aprender. Sentindo que seu entendimento era pouco, aquele estudante começou a orar e a jejuar para que o Senhor viesse em seu socorro.
Num final de semana, ele foi convidado para almoçar, no sábado, com os Harder, na mesa que a família ocupava no refeitório. Nosso moço, um tanto sem jeito, disse à sra. Harder que não iria almoçar aquele dia. Imaginando que ele estivesse envergonhado de partilhar da mesa do diretor, ela começou a insistir com ele para que aceitasse o convite. Foi então que ele contou-lhe que naquele sábado estaria jejuando. A missionária lhe fez algumas perguntas e quando soube que o rapaz estaria jejuando para que o Senhor o ajudasse a aprender, ela disse-lhe que também iria jejuar e orar a Deus por ele com muito fervor.
Assim aconteceu. Naquele dia, mamãe Harder e o aluno que não sabia ler jejuaram e oraram juntos. Preces ardentes subiram aos céus suplicando a Deus por sabedoria.
A luta ainda continuou por algum tempo. Os esforços eram grandes. Sempre que alguém podia dispor de algum tempo, punha-se a estudar com o aluno. E quando ninguém estava disponível, mamãe Harder procurava estudar com ele. Era muito interessante ver aquela senhora que falava um português cheio de sotaque, soletrando as palavras com o aluno, ou fazendo-lhe pequenos ditados. Por vezes, a "professora" ditava alguma palavra, mas por causa de seu sotaque americano, saía algo meio estranho e o aluno não entendia. Era chamado, então, quem estivesse mais perto para dar socorro à professora e ao aluno. Nenhum dos dois, porém, desanimava.
Pouco a pouco, os esforços foram dando resultados. Pelo meio do ano, o jovem já estava lendo e escrevendo o suficiente para acompanhar as aulas do professor Roth. Sabe-se que a sra. Harder orava continuamente pelo moço. Deus ouviu as preces e aquele aluno tornou-se um vencedor.
Casos como este aconteciam de vez em quando. Os alunos vinha de lugares distantes e diferentes. Os interesses também eram diversos. Assim, os professores precisavam usar muita criatividade para atender a todos. Os resultados apreciam sempre.
O ensino da Bíblia, parte mais importante do currículo, era do agrado de todos. Quando o pastor Harder estava na Escola, ele se incumbia desta parte. Nessa aula não havia problemas. Todos eram interessados em aprender cada vez mais e liam a Bíblia com interesse e carinho. Nas aulas "de cantar" o entusiasmo era contagiante. Mesmo que não formassem um coral totalmente afinado, todos cantavam com animação.. Agora, na hora da matemática... a coisa mudava! Soma, subtração, raiz quadrada e companhia não eram do agrado de todos.
" Tudo é necessário à vida e precisa ser estudado" - dizia o prof. Roth, com seu acentuado sotaque alemão. E repetia: "Tudo é necessário e vocês estão aqui para aprender tudo o que puderem. Não sabemos o que os espera depois que saírem daqui. Então, vamos estudar!"
A alegria voltava, cada um se aplicava o mais que podia e a ciência dos números ia-se tornando mais fácil para todos. Sempre que possível, os alunos recebiam lições práticas de vida. O casal Harder se preocupava com a formação integral do educando e fazia o seu melhor para alcançar este objetivo. Não raro, papai Harder reunia os rapazes e mamãe Harder reunia as moças para lhes falar de fatos da vida, como faziam com os próprios filhos. Quando se formavam, moços e moças estavam preparados para enfrentar o mundo com todas as suas complexidades.
6. O sapatos "novos" do professor
Cristianismo, disposição para trabalhar e dedicação aos estudos eram os requisitos essenciais para que um aluno fosse recebido no internato. Bens materiais não eram essenciais. e nem poderiam ser, uma vez que a maioria dos alunos não os tinha.
Em 1931, como o número de alunos houvesse aumentado, foi necessário chamar um novo professor. Eram dois agora. O professor, porém, também era pobre. Quase tanto quanto os alunos. Viera para a Escola porque era um idealista. Os Harder não tinham como pagar altos salários. Aliás, os salários eram pequenos e, vez por outra, até atrasavam. Não havias queixas, contudo. Os que trabalhavam no Colégio Cruzeiro do Sul estavam cientes das dificuldades que teriam de enfrentar. Pois o novo professor, lá pelas tantas, percebeu que o seu melhor par de sapatos (quem sabe, o único) estava perdendo a cor. Engraxá-lo já não estava sendo suficiente para lhe dar uma melhor aparência. Preocupado, ficava ele a imaginar em como poderia fazer para que seus sapatos durassem um pouco mais, até que fosse possível comprar um outro par.
Por mais que pensasse, porém, as idéias não lhe vinham. O solado estava bom, os sapatos eram confortáveis, mas a aparência do couro não estava lá essas coisas.
Certo dia, o professor chegou à lavanderia bem na hora em que mamãe Harder e Mathilde Kohler estavam tingindo algumas roupas velhas para lhes dar uma aparência melhor. Curioso, ele ficou algum tempo observando. Viu como tecidos descorados e desgastados saíam do tacho de água fervente com aspecto de panos novos, com cores renovadas e bonitas.
O professor continuou a observar e enquanto olhava os tecidos que saíam do tacho renovados, começou a olhar para os seus sapatos. Uma idéia, pouco a pouco, foi tomando conta de seus pensamentos. Por que não? Se aquela tinta "milagrosa" da sra. Harder podia renovar tecidos, certamente poderia fazer o mesmo com o couro. Pensou em pedir orientações à missionária ou à auxiliar. Ficou envergonhado, porém. Não queria que elas pensassem que ele era ignorante com relação às coisas práticas da vida. Pensou e não hesitou. Correu ao quarto, tirou os sapatos, calçou um chinelo e envolveu os sapatos num pano.
Voltou e, um tanto encabulado, foi ficando por ali. As duas mulheres terminaram o serviço. Mamãe Harder ainda perguntou ao professor se ele estava precisando de alguma coisa, mas ele desconversou. O par de sapatos, firmemente embaixo do braço.
Quando as duas deixaram a lavanderia, o tacho ficou sobre o fogo, no chão. Como ainda havia brasas, a água continuava a ferver. Ele olhou para toda aquela água pretinha, pretinha... Olhou para um lado e para outro. Não havia ninguém. Corajosamente, tomou os sapatos e jogou-os dentro do tacho assim como vira mamãe Harder fazer. Esperou algum tempo, preocupado em que aparecesse alguém, mas tal não ocorreu. Quando imaginou que seus sapatos já haviam fervido o tempo suficiente, o professor retirou-os do tacho. Gostou do que viu. Aparentemente, haviam tomado uma cor bastante razoável. Rapidamente, levou-os para o quarto. Agora era esperar que secassem e teria um par de sapatos bem apresentáveis outra vez.
Deixou os calçados num cantinho e foi cuidar de seus afazeres. Quando procurou pelo par de sapatos, à tarde... que surpresa! Sequer se assemelhavam àquilo que havia colocado na água fervente para tingir. Na verdade, a aparência deles era a de dois sapos enrugados, nem pretos, nem marrons, nem de cor nenhuma. O pobre do professor não sabia que o couro não podia ser "cozinhado" em água fervendo!
O mestre ficou bem quietinho, matutando sobre como conseguir comprar um par de sapatos novos. Agora não tinha mais como escapar deste fato. Felizmente, pensou ele, ninguém havia presenciado a sua epopéia. Pelo menos estaria livre de brincadeiras por parte dos alunos.
Preparou-se e tranqüïlamente dirigiu-se para a sala de jantar. De chinelos, é claro. Não chamou atenção já que o uso de chinelos ou tamancos era muito comum. Tudo transcorreu normalmente. Os alunos mantiveram a conversa costumeira. Terminado o jantar, como sempre, passou-se ao culto vespertino. Este era um momento especialmente apreciado pelos alunos. Normalmente, a sra. Harder ou Mathilde contava uma história . Por vezes, era dada a oportunidade a algum aluno. Assim , naquela noite, um aluno pediu para contar uma história. Fez uma ressalva, porém. Gostaria de contá-la depois que terminassem o culto. E assim aconteceu. Após a oração final, o aluno foi para a frente, fez uma expressão de amargura e disse que iria contar uma história não muito alegre, cujo título era " Triste fim dos sapatos de um professor". Então contou toda a história. Ilustrou-a mostrando o par de sapatos. Houve muita alegria. Embora todos amassem e respeitassem o professor, o fato era realmente muito engraçado.
Terminada a narrativa, o professor procurou o aluno. Estava curioso para saber como o moço sabia tanto da história. Afinal, ninguém vira quando os sapatos haviam sido colocados no tacho de água fervente. Bem, o aluno estava empilhando lenha ali por perto e ficou curioso por saber o que estaria o mestre fazendo na lavanderia. Presenciou todo o acontecido. Depois foi fácil. Seguiu o professor, viu onde estavam secando os sapatos. Depois que o dono saíra para o jantar, ele entrara no seu quarto ( as portas não eram trancadas) e pegara os ditos cujos. Pode-se imaginar o resto. Todo queriam ver os sapatos "novos" do professor.
A coisa só terminou quando mamãe Harder disse ao jovem professor que não se preocupasse. De uma maneira ou de outra, ele teria sapatos novos para suas atividades sabáticas.
Durante muito tempo, o professor tinha de responder perguntas a respeito de seus sapatos tingidos e quase sempre o ouvinte não conseguia conter o riso. A "triste história do sapato novo do professor" passou a fazer parte das histórias famosas do Colégio Cruzeiro do Sul nos seus primeiros anos de funcionamento.
Capítulo 6
Adeus, Colégio Cruzeiro do Sul
1929 a 1939! 10 anos dedicados a um sonho! Um sonho que parecia de impossível realização, mas que sob as ordens diretas de Deus , um dia, veio à luz!
Entre muitas lutas e incontáveis bênçãos, muitos anos se passaram. Papai Harder teve a alegria de ver muitos de "seus filhos" irem a São Paulo, receberem mais instrução e retornarem para desempenhar o seu papel no trabalho para o Senhor, ou em setores diversos da sociedade. Viu-os constituir famílias bem estruturadas. Uma ou outra ovelha saiu do caminho e o missionário se entristecia ao pensar nisto. Dizia, porém que não poderia ser ingrato para com Deus. A safra dos que seguiram caminhos retos era muito maior. Este pensamento logo lhe devolvia a alegria.
Já em 1935, a Associação Sul-Riograndense se interessara pela Instituição, até então propriedade particular dos Harder. Nesse ano, os missionários já haviam tido o auxílio da mesma na administração do Colégio. Muitos professores se haviam unido à família colegial. O número de alunos era bem mais expressivo do que aquele dos primeiros tempos. Estava na hora de se pensar em oferecer aos estudantes um currículo de estudos mais formal, mais estruturado dentro das leis federais de ensino, mesmo porque as autoridades educacionais estavam fazendo algumas exigências.
O sistema educacional brasileiro sofrera sérias mudanças durante os anos que se haviam passado. Os cursos , no Colégio de São Paulo, para aonde se dirigia a maioria dos alunos da Escola do sul também estavam diferentes, com maiores exigências quanto ao preparo inicial. Urgia então que fossem feitos planos para que a Instituição se enquadrasse nessas novas veredas. Foi então que o casal missionário, depois de muita oração, concluiu que era chegada a hora de outra vez, tomar novos rumos. A Escola dos sonhos estava em pleno e satisfatório andamento. Braços mais jovens poderiam levar o trabalho avante. Certamente, o Senhor, em Sua sabedoria já teria providenciado alguém que amasse os jovens, que amasse a educação adventista e que estivesse disposto a empunhar o cajado que o pioneiro estava prestes a deixar.
Assim, com nostalgia, é verdade, mas com a certeza do dever cumprido, o casal resolveu entregar o Colégio para a Organização Adventista. O pastor Harder já não era tão jovem. Os anos de imensa labuta haviam-no enfraquecido. Mamãe Harder, com a saúde abalada, já não tinha as forças necessárias para continuar o trabalho. Os filhos mais velhos que sempre os haviam ajudado em tudo, estavam na idade de ir para São Paulo a fim de continuar os estudos.
A família reuniu-se mais uma vez. Com gratidão, louvaram ao Senhor pela bênção do sonho realizado. Depois, pais e filhos se puseram a ponderar sobre a possibilidade de doarem à Associação o terreno e os prédios da Escola. E assim foi. Sabiam que a Associação não se interessaria pelo gado e pela fábrica de laticínios. aquela que servira de apoio para que tantos conseguissem pagar suas despesas escolares! Era necessário desfazer-se dela. Com certeza, seriam providenciados outros meios para que jovens que não dispusessem de recursos financeiros pudessem continuar a vir para a Escola do vale. Esta certeza acalmou o coração do pastor Harder.
Com este pensamento, iniciou-se o ano de 1937. O corpo docente fora acrescido de alguns novos professores. Entre eles, um jovem advogado com formação educacional: Octávio Espírito Santo. Sua esposa, Micol Gueiros Santo era professora de várias disciplinas. Estes dois professores, o prof. Herbert Hoffmann, sua esposa Elza e o pastor Harder formaram o corpo docente desse ano. Logo após a sua chegada, o Dr. Octávio já começou a preparar a documentação para a oficialização da Escola.
Durante o ano de 1937, houve os últimos entendimentos para que o Colégio Cruzeiro do Sul passasse a pertencer à Associação Sul-Rio-grandense. Alguns membros da Igreja e até alguns líderes não achavam boa a idéia de oficializar-se a Escola, achando que tal fato era uma forma de desrespeito às normas da igreja, porque os estudos da Escola oficializada teriam de estar de acordo com as normas do governo. Foi necessário explicar muitas e muitas vezes que se a oficialização não ocorresse, os alunos poderiam perder todos os anos de estudo e, a qualquer momento, a Escola poderia ser fechada. Eram novos tempos e o sistema educacional da igreja tinha de adaptar-se a eles. Tal já acontecera com o Colégio de São Paulo.
1938! Então aconteceu! Papai Harder vendeu os apetrechos da pequena fábrica, vendeu o gado para pagar algumas dívidas e entregou a sua Escola à administração da Igreja Adventista no Rio Grande do Sul. A Escola particular, mas que sempre fora adventista do sétimo dia, passava, agora a pertencer oficialmente à Organização. O Dr. Octávio Espírito Santo torna-se diretor do Colégio Cruzeiro do Sul. Durante o ano em questão, o casal Harder continua na Escola. O pioneiro é o braço direito do novo diretor e fica encarregado dos internatos e da alimentação dos alunos. A esta altura, os filhos mais velhos, Leon e Palmer, já estavam em São Paulo continuando os estudos.
Em janeiro de 1939, a família Harder aluga uma casa em Taquara e ali reside por um ano. A pequena cidade também mudara muito nesses dez anos. Havia muito mais movimento do que quando os meninos Harder e os alunos vinham entregar mercadoria de porta em porta. Alguns automóveis, poucos realmente, já percorriam as ruas taquarenses, grande parte ainda sem calçamento. Tudo isto trazia saudosas memórias ao casal. Durante esse tempo em que moraram na cidade, os missionários colocaram em ordem alguns negócios pendentes e se prepararam para retornar aos Estados Unidos. Durante o ano, porém, vem-lhes o convite para trabalhar em Serra Pelada, no estado do Espírito Santo.
O casal de pioneiros tinha dedicado preciosos anos de sua vida ao rincão gaúcho que tanto amaram. Seus cabelos se fizeram brancos... Seus corpos se desgastaram, mas eles nunca se arrependeram. Agora, o sonho estava completo. O primeiro desejo do pioneiro estava plenamente realizado. A Escola que ele fundara pertencia à igreja que ele amava. Nunca fora seu propósito ter uma escola particular. Muitas vezes, papai Harder com sua voz grossa, ainda carregada de sotaque, dizia: " O Senhor conhecia o fim desde o princípio. Quão abençoados fomos!"
Finalmente, a partida! Com que emoção o casal deve ter olhado pela última vez a "sua Escola"! Os jardins, as árvores, os prédios... Aquele primeiro, construído pelo querido prof. Roth... Quantas lembranças devem ter-lhes vindo à mente ao caminharem próximo ao Rio dos Sinos ou ao rio Santa Maria....Cada árvore, cada montículo de terra, cada flor lhes era já uma agridoce nostalgia.
O coração de papai Harder deve- se ter acelerado, as lágrimas lhe devem ter corrido pelas faces, ao olhar pela vez derradeira, aquele recanto, entre eucaliptos e palmeiras, onde o anjo do Senhor lhe aparecera para lhe fazer a promessa de que o alimento não faltaria!
Um último olhar, uma precoce saudade e lá se vão o pioneiro e sua dedicada esposa...Voltariam algum para rever a amada Escola dos sonhos? Não sabiam no momento. Deus cuidaria do futuro como cuidara do passado.
Adeus, papai Harder! Adeus, mamãe Harder!
Adeus Colégio Cruzeiro do Sul! Adeus!
III Parte
Depois da era Harder
Capítulo 1
Outros tempos... Outros caminhos
Em 1939, o Colégio Cruzeiro do Sul foi oficializado. Passou a ter um sistema de ensino dentro das normas governamentais, com um currículo de estudos supervisionados pelas autoridades educacionais. Foi mais uma vitória. Ginásio Adventista de Taquara - GAT foi o nome com o qual a Escola passou a ser conhecida. Os alunos, agora, após terminarem seus primeiros estudos, ou mesmo que não o fizessem, poderiam transferir-se para outra escola pública ou particular sem nenhum problema. Outros prédios foram construídos, destacando-se especialmente o prédio escolar, de bonitas linhas arquitetônicas e que passou a ser uma espécie de cartão postal do Colégio.
Eram anos diferentes com necessidades diferentes. Novos dormitórios foram construídos. A Escola progredia e progredia... O bom nome da Instituição foi-se espalhando pela região e esta passou a ser procurado por muitos e muitos alunos de outras crenças religiosas. Eram alunos externos e internos. Muitos encontraram aqui, não somente os conhecimentos que buscavam, mas também um novo ideal de vida um caminho diferente que os levaria a outras conquistas.
Cada novo diretor procurava fazer o melhor em favor da Instituição e assim esta foi-se modificando e atualizando cada vez mais. Todos eles deixaram, indelével, sua marca em setores diferentes do Colégio. Seus nomes são parte inconfundível da história desta Casa.
Com a implantação do Curso de Contabilidade no final da década de 50, foi necessário mudar-se o nome da Escola. Esta passou a chamar-se então Instituto Cruzeiro do Sul - ICS. Por algum tempo, este nome foi mantido. Em 1962, porém, o nome foi mudado para Instituto Adventista Cruzeiro do Sul - IACS. Sob esta denominação, o perfil do Colégio tem atravessado fronteiras e mares no trabalho e na lembrança de seus ex-alunos que se espalham pelo território nacional e por várias partes do mundo.
Com o passar dos tempos, novos cursos foram sendo acrescentados e o número de alunos foi aumentado cada vez mais. Não levou muito tempo para que se começasse a receber rapazes e moças de outros estados do Brasil e até mesmo do exterior. Todos recebidos com carinho e amor. No Vale, havia um lar que a todos acolhia prazerosamente.
Novos tempos... novos caminhos! Em 1963, pela primeira vez, um ex-aluno do Colégio Cruzeiro do Sul assume o posto de diretor geral do IACS! Quanta alegria dever ter ele sentido! No início da década de 40, ele havia estado entre os alunos da primeira turma a se formar no Ginásio Adventista de Taquara. Agora, vinha dirigir a Casa onde havia recebido as primeiras orientações para bem percorrer os caminhos da vida. Com que emoção deve olhado para estas plagas! Quanta saudade deve ter sentido!
Depois dele, muitos outros ex-alunos têm dirigido os destinos desta Escola , como diretores, tesoureiros, professores, enfim servindo ao antigo lar em suas mais diversas necessidades.
À medida que o tempo passava, as necessidades iam-se ampliando e novos cursos foram sendo implantados: Curso Normal, Curso Científico. Estes, no final da década de 60. Mais tarde, após a Reforma do Ensino, estes cursos mudaram de nome e, no início da década de 80, foi implantado o curso de Técnico em Enfermagem.
Novos tempos... Novos caminhos... A música sempre fora parte importante na história do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul. Conforme já vimos, o casal Harder gostava de cantar. Ela tocava piano e sempre atuou como pianista nas igrejas em que trabalhou. Assim, o canto e a aprendizagem de algum instrumento eram incentivo contínuo aos alunos. Desde os primeiros anos, quando a situação financeira o permitiu, havia um professor para ensinar música. Em 1937, havia até uma pequena orquestra que muito sucesso fez por onde andou.
Foi, pois, com muita alegria que em 1974, foi implantado no IACS, o Conservatório Adventista Musical de Taquara – Camta. Começou pequenino, com poucas opções artísticas e três professores. Pequeno, mas cheio de esperança. Progrediu...e aí está alegrando a todos com suas realizações.
A família colegial crescia. Muitos professores passaram a fazer parte do Corpo Docente. Foi necessário, então, que se construíssem casas para eles. Várias residências confortáveis foram incorporadas à paisagem iacsense, juntando-se às primeiras duas já existentes. Algumas velhas casas remanescentes dos primeiros tempos passaram a ser usadas para outros fins (depósitos, oficinas, etc.) e pouco a pouco foram sendo destruídas para dar lugar a novas construções Nestas últimas décadas de sua história, vez por outra, a Escola tem enfrentado algumas crises, sobre-tudo financeiras. Algumas maiores, outras menores. As duas mais difíceis ocorreram no início da década de 60 e no início da década de 80. Foram tempos atribulados. Dias cinzentos e tumultuados.
Com muita oração, administração, professores e funcionários deram o seu melhor para que Colégio continuasse a cumprir os objetivos pelos quais fora criado. As crises passaram. Aquelas e outras menores que, às vezes, teimaram em aparecer. A Escola continuou tranqüila educando os jovens que lhe eram confiados.
Em 1978, ao completar o jubileu de ouro, o IACS era uma escola nacionalmente reconhecida por seu sistema de ensino e por seus altos ideais nos rumos da educação. Sua história serve de enlevo e de inspiração para todos os que a ouvem. Fatos notáveis têm marcado a vida estudantil nas últimas décadas. Histórias de vida têm acontecido nestes arraiais. São histórias, por vezes, cheias de dificuldades, de aflições. São histórias, por vezes repletas de alegria e felicidade. Todas elas, porém, encontrando realização plena neste lar que um dia acolheu aqueles que a buscaram na procura de um objetivo para a sua vida.
Novos tempos... novos caminhos... novas histórias...
Capítulo 2
Uma Vida Transformada
Ele não era adventista. Sua mãe o havia sido, na juventude. Aliás, ela fizera parte dos primeiros que se converteram em sua região. Fora batizada nos primeiros batismos . Casou-se, porém, com um moço que não era da igreja e este com o correr dos tempos, fez com que ela deixasse os caminhos do Senhor. Assim, o nosso jovem cresceu ouvindo a mãe (sem que o pai soubesse) falar bem da igreja e ouvindo o pai dizer coisas horríveis a respeito da mesma igreja. Cresceu sem preocupações religiosas, seguindo os caminhos que o pai seguia. Aos 9 anos, ouviu, pela primeira vez, falar de Jesus de maneira mais incisiva. Foi num terno de reis em sua casa. Perguntou então à mãe:
"Mãe, esse Jesus de quem os homens do terno de reis cantaram, realmente existiu?"
"Sim, meu filho. Existiu e ainda existe. Ele morreu por nós e agora está no céu, mas um dia voltará outra vez."
Diante da resposta positiva e eloqüente da mãe, o menino ficou pensativo. Foi perguntar a outras pessoas e a reposta que recebeu de todas o fez mais pensativo ainda. Ele não tinha entendido muito bem o que a mãe dissera naquele momento e ninguém mais soube explicar-lhe coisa alguma.
À medida em que ia se tornando mais velho, ia ouvindo mais coisas sobre esta ou aquela religião e sua mente ia ficando um tanto confusa com os fatos. Vale dizer que uma boa parte dos parentes continuava fiel à mensagem que um dia havia recebido. Quando o rapaz estava com 16 anos, ouviu um primo falar ao pai a respeito da volta de Jesus. O que ouviu, calou fundo em seu coração. Aquelas palavras que ouvira da mãe um dia, vieram-lhe à mente e, agora, ele pôde entender melhor o que fora dito por ela.
Foi então procurar um Novo Testamento que havia em casa e pôs-se a ler com atenção. Guardava em seu coração o que ia lendo. Algumas leituras causavam-lhe, por vezes, muita angústia. Aos 18 anos, teve em suas mãos, pela primeira vez, uma Bíblia completa, que seu cunhado lhe havia emprestado. Ao lê-la, encontrou ali fatos sobre os quais nunca tinha ouvido falar. Ficou com a convicção de que era um grande pecador. Quanto mais lia, tanto mais se convencia de que Deus era um ser terrível pronto a castigá-lo. Imaginava que seus peca dos eram tão terríveis que já não havia nenhuma esperança para ele. Seu desespero era muito intenso e ele não se atrevia a pedir que alguém lhe explicasse a Sagrada Escritura. Tinha medo do pai, é certo, mas a preocupação maior era com relação à mãe. Temia que o pai, percebendo o interesse do filho pelas verdades sagradas, viesse a maltratá-la, imaginando que ela o estivesse influenciando.
Um dia, um primo o convidou a ir a uma reunião da igreja adventista.. Como era um feriado que caíra no sábado, o pai não fez caso de que ele fosse. Após assistir à Escola Sabatina e ao sermão, percebeu que muitas das sua dúvidas tinham sido desfeitas e seu medo de Deus se havia acabado. Tinha a impressão de que Deus pusera, nas palavras do pregador , tudo aquilo que ele estava ansioso por ouvir. Voltou para casa com o coração aliviado e com o firme propósito de obedecer aos mandamentos de Deus.
Quando resolveu guardar o sábado, o pai se enfureceu. Fez-lhe uma porção de ameaças. O jovem, porém, ficou firme em suas convicções. Mas a situação em casa ficava cada vez mais difícil. Um tio, penalizado, levou-o para morar em sua casa por algum tempo. Ao voltar para o lar, nosso moço encontrou o pai ainda mais irado contra os adventistas. Quando o filho disse ao pai que agora guardava fielmente o sábado, este o expulsou de casa. Com apenas 18 anos, expulso de casa! Algum tempo antes, um tio lhe falara de uma Escola em Taquara, onde alunos podiam estudar e pagar suas despesas com trabalho. Disse-lhe que o diretor era um senhor estrangeiro muito bom que recebia com amor todos os alunos. Nosso moço não teve dúvidas. Arrumou suas poucas coisa e fez todos os preparativos para deixar o lar paterno, quem sabe, para sempre.
1938. Dia 3 de agosto. A família levantou-se de madrugada conforme o costume. O moço tinha suas coisas arrumadas numa pequena trouxa. Antes de sair, convidou a mãe os irmãos para que fizessem uma oração. Convidou o pai também, mas este nem lhe deu resposta. O moço orou com fervor, pedindo que o Senhor cuidasse dos pais e dos irmãos e entregou Lhe o seu futuro. Ainda estava escuro quando o moço se pôs a caminho. A pé, descalço, com a pequena trouxa às costas, ele caminhou o dia todo, para vencer os 25 quilômetros que o separavam de seu novo lar. Seria aceito? Não tinha feito nenhum contato. Sabia, porém que o dono da Escola era um homem de Deus que por certo o receberia. Que tristeza, porém, quando já próximo de seu destino alguém lhe disse que a Escola tinha agora um novo diretor. Aquele a quem ele pensava encontrar havia passado a direção para outra pessoa.
Com apreensão o rapaz se apresentou ao novo diretor. Enquanto contava sua história, em seu coração, orava para que Deus o ajudasse. Se não pudesse ficar ali, para onde iria? Se a oportunidade lhe fosse dada, ele trabalharia com dedicação e estudaria muito para compensar o tempo perdido. Seu sonho? Preparar-se para trabalhar na obra do Senhor. Foi aceito, sem dinheiro e sem mais nada. Na sua mochila, umas poucas peças de roupa e um sapato usado que ele havia comprado do cunhado. No coração, porém, muita confiança em Deus e muita vontade de vencer. E a Escola do Vale o acolheu como havia acolhido a tantos antes dele.
Foi alojado num velho casarão perto de um estábulo, local onde exerceria suas atividades. Era frio e malcheiroso, mas para ele, era como se fosse um pedaço do céu. Alguns dias depois, foi à cidade e com o único dinheiro que tinha, comprou um acolchoado, pois as noites do agosto gaúcho eram geladas. Assim mesmo, ele quase não conseguia dormir à noite. Com o pouco dinheiro de que dispunha comprara uma coberta um tanto fina e esta não era suficiente para aquecê-lo. Numa gélida manhã, ao dirigir-se para o trabalho, o rapaz, viu, a um canto, um colchão velho. Perguntou então ao preceptor se poderia levá-lo para o seu quartinho. O preceptor consentiu. Que maravilha! Agora não haveria mais frio. Naquela noite, ao deitar-se, nosso moço colocou o velho colchão sobre sua fina coberta. Que diferença! Num instante estava aquecido. Durante o restante daquele, inverno, o velho colchão lhe serviu de cobertor e ele não mais sentiu frio, podendo descansar tranqüilamente à noite.
A certa altura, o rapaz contraiu uma forte gripe que o deixou muito doente. Sem dinheiro para comprar remédios, muito tímido para contar a alguém as suas dificuldades, o rapaz passou algum tempo de muita tribulação. A gripe foi-se agravando, ele tossia muito, quase não conseguia dormir e foi ficando muito fraco. Uma professora, ao saber de seu caso, pôs-se a cuidar dele. Preparou-lhe um remédio à base de mel e cuidou para que ele se alimentasse todos os dias. Muitas vezes, ela preparou em sua casa, algum alimento especial para ele. Foi um tempo muito difícil. O rapaz chegou a pensar que seus dias estavam contados. Com os cuidados maternais da bondosa professora, porém, ele se refez e pôde continuar os seus estudo e os seus trabalhos.
Nem tudo foi um mar de rosas. Enfrentou muitas dificuldades e até doença. Mas a Escola do Vale transformou a sua vida. Muito tempo depois, ele, já pastor, teve o privilégio de rebatizar a sua mãe e, 53 anos depois daquele nevoento dia em que foi expulso de casa, ele batizou também o pai! Em seu profícuo trabalho, este pastor ganhou muitas e muitas almas para o reino de Deus.
É por isso que ele ama muita esta Casa, e louva ao Senhor pela Escola que um homem de Deus, um dia, plantou neste vale!
Capítulo 3
As janelas de ferro do refeitório
Era uma vez um moço que morava na zona rural de uma grande cidade gaúcha. A família não era pobre, uma vez que possuía grande extensão de terra onde plantavam arroz e criavam animais. O pai, porém, como precisasse que os filhos o ajudassem na lavoura, só lhes permitiu freqüentar a escola por um mínimo de tempo. Falecido o pai, verificou-se que seus negócios estavam totalmente em desordem. Havia vendas e compras das quais não existiam documentos e outras confusões mais.
A família, agora, não tinha nem experiência e nem meios de contratar um advogado para tentar resolver a questão. O filho mais velho tinha de ir para o quartel. Assim, a mãe resolveu deixar um sobrinho morando na casa da fazenda e mudar-se para a cidade onde haveria mais possibilidades de os filhos e ela mesmo conseguirem trabalho.
Depois de algum tempo, um senhor visitou a família a fim de lhes falar da mensagem adventista. Convidou a mãe e os filhos para assistirem a umas conferências que estavam sendo realizadas na cidade. Apenas um dos filhos aceitou o convite. Foi e gostou. Voltou outras vezes. Não era muito fácil fazer isto. Trabalhava 12 horas por dia num engenho de arroz, carregando sacos para os caminhões ou fazendo o descarregamento de outros produtos. À tardinha, estava realmente muito cansado. Mas não perdia nenhuma reunião. Recebeu orientação religiosa daquele mesmo senhor que lhe fizera o convite logo depois foi batizado. Gradualmente, toda a família se converteu, inclusive uma irmã casada e seu esposo.
A vida ainda era difícil. O moço, o irmão mais velho e o irmão mais moço trabalhavam duro para manter a casa: eles mesmos, a mãe e duas irmãs menores. Agora, contudo, havia mais alegria na família. O descanso sabático era uma bênção pela qual eram gratos a Deus. Não tinha sido muito fácil conseguir ter o sábado livre. Eles, porém, bons trabalhadores, tinham conseguido a simpatia dos patrões, mesmo porque enfrentavam qualquer serviço e estavam sempre prontos a colaborar. Certa vez, houve uma espécie de greve no engenho em que nosso jovem trabalhava. Ele compareceu fielmente ao trabalho. O patrão mandou um carro buscá-lo em casa para que pudesse vir atender a seus compromissos. A vida era difícil, sim mas cheia de esperança.
Certo dia, aquele senhor que levara à família o convite para as conferências, pediu ao nosso moço que fosse a sua casa, pois queria ter uma conversa muito importante com ele. Assim que houve uma oportunidade, o rapaz foi. Depois dos cumprimentos e de alguma conversação, aquele velho amigo lhe disse:
"Rapaz, você é um bom moço. Aprecio bastante o seu esforço para dar bem-estar a sua mãe e às irmãs. Aprecio também a maneira como você vive os princípios da nossa igreja. Por isso, quero lhe dar um presente. Aguarde que vou buscá-lo".
Presente? Que coisa maravilhosa! Há muito tempo que ele não recebia nenhum presente. O que seria? Uma camisa? (Bem que ele estava precisando de uma) Um livro, quem sabe. O rapaz gostava muito de livros. Enfim, um presente sempre é bem-vindo. Não importa o que seja.
Qual não foi a sua decepção quando o senhor retornou à sala apenas com um papel na mão. Nem sequer era um papel de enrolar presentes. Então aquele amigo lhe disse:
"Não tenho dinheiro para lhe dar, e nem condições para comprar-lhe um bom presente. Mas o que tenho aqui, mudará a sua vida para sempre. Fará de você uma pessoa mais apta a enfrentar o mundo com todos os seus desafios. Aqui está a sua vaga para estudar no Ginásio Adventista de Taquara. Escrevi ao diretor, contei-lhe sua história e ele mandou-me este papel onde está escrito que seu lugar no Ginásio está reservado."
Antes que o moço, estupefato, pudesse falar qualquer coisa, o velho senhor continuou:
"Bem sei que você não tem como pagar as despesas escolares. Não há nenhum problema. Você está sendo recebido como aluno-industriário. Vai trabalhar no próprio colégio para custear os seus estudos.
Não deixe passar a oportunidade. Muitos jovens, todos os anos, desejam ir estudar no Ginásio de Taquara como aluno-trabalhador e não conseguem vaga."
Aquele moço voltou para casa pensativo. Estudar era o que de melhor poderia acontecer-lhe. Mas como iria deixar a responsabilidade de manter a casa sobre os dois irmãos? No meio do caminho, parou para orar. Pediu ao Senhor que o orientasse e que se fosse realmente para ir ao Colégio, que as outras portas se abrissem para ele.
Chegando a casa, contou à família o que estava acontecendo. Todos foram unânimes em dizer-lhe que ele deveria aceitar a oportunidade que Deus estava lhe dando. A mãe disse que não se preocupasse. Dariam um jeito de se arrumar. Oraram juntos e confiantes em Deus, todos começaram a fazer os preparativos necessários. Algum tecido foi comprado. A mãe confeccionou-lhe algumas peças de roupa, compraram alguma roupa de cama e eis que o rapaz estava pronto para vir ao Colégio.
A viagem durou o dia todo, num trem fumacento e numa vagão de segunda classe. Chegou ao Ginásio já bem à tardinha. Logo na chegada, informaram-lhe que aquele diretor que havia mandado a sua confirmação de vaga, tinha sido substituído por outro. Levado à presença do novo diretor, este encaminhou-o ao dormitório dizendo-lhe que no dia seguinte iria estudar o caso e resolver se ele poderia ficar ou não.
Foi uma noite de grande angústia. Um jovem muito tímido, num lugar estranho, sem saber se poderia ficar e sem nenhum dinheiro para retornar para casa... Orou como nunca aquela noite. Pediu a Deus que fizesse o que fosse melhor para ele. Ficar ou não estava nas mãos do Senhor. O moço estava pronto a aceitar o plano divino.
No dia seguinte, ao se apresentar ao diretor, este lhe disse que poderia ficar. Se o seu trabalho fosse satisfatório, continuaria até terminar o ginásio.
Nem tudo foi fácil. Mas tudo foi se ajeitando devagarinho. O rapaz foi trabalhar na oficina da Escola. Habilidoso e preocupado em aprender tudo o que pudesse, em pouco tempo já era responsável pelos setores de eletricidade e de consertos. Deus o abençoou grandemente. No final daquele primeiro ano, graças ao seu bom desempenho, a administração achou por bem estender a oportunidade também ao irmão mais moço.
Naquele ano, estava-se terminando a construção do novo dormitório feminino, do refeitório e da cozinha. Faltavam ainda as armações de ferro para as janelas do refeitório que seriam do tipo vitrô. Quando o responsável foi em busca de pessoas especializadas para a confecção das mesmas, prazo pedido pela empresa foi de 2 meses. O Colégio, porém, não podia esperar tanto tempo. Foi em busca de outra firmas mas ninguém poderia fazer o trabalho em tempo hábil. O mundo acabava de sair de uma guerra e nem sempre era possível conseguir-se material ou mão- de- obra especializada para determinados tipos de serviço. O que fazer? Deixar a inauguração para mais tarde?
Tal fato nem passou pela cabeça do presidente da Associação Sul-rio-grandense, entidade mantenedora do Ginásio Adventista. Então ele se lembrou daquele rapaz da nossa história. Este presidente, ex-diretor do Ginásio, fora quem providenciara a vaga de aluno-trabalhador para o jovem. Em visitas ao Colégio, sempre ouvira boas referências ao trabalho do moço. Apreciava-o e se fizera seu amigo.
Diretor e presidente foram em busca do aluno. Era ainda tempo de férias de verão. Que tal aceitar um desafio? Estariam , ele e o irmão, dispostos a fabricar as armações de ferro para as janelas do refeitório? Ambos eram habilidosos e com um bom treinamento numa firma especializada, certamente poderiam realizar o trabalho em tempo hábil, de acordo com as necessidades da Escola.
E assim foi feito. Os dois irmãos estagiaram alguns dias numa firma especializada especialmente em soldagem de ferro. Com muita oração para que Deus os ajudasse, voltando à escola, puseram-se a trabalhar. Com empenho e dedicação, conseguiram aprontar tudo em tempo recorde. O refeitório foi inaugurado na data prevista, com todas as janelas prontas e bonitas.
Estão lá até hoje.
A administração conhecendo a preocupação dos rapazes com a mãe e as irmãs, providenciou uma pequena casa, dentro do campus escolar e deu-a para os rapazes a fim de que trouxessem o resto da família para estar junto deles. Tudo agora se tornou mais fácil. A família estava reunida. Graças à disposição em bem fazer tudo que lhes viesse às mãos, nosso moço e seu irmão contribuíram para que as irmãs também pudessem estudar no Ginásio Adventista de Taquara. A família sempre foi grata à administração da Escola pela oportunidade que foi dada a todos.
Ao terminar o ginásio, o rapaz dirigiu-se ao Colégio de São Paulo para continuar seus estudos. Posteriormente retornou a seu estado, já formado, para continuar o seu trabalho para o Senhor. Foi pastor distrital e depois professor do IACS. Jamais deixou de louvar ao Senhor que um dia permitiu que a mensagem adventista chegasse até ele e que inspirou alguém a providenciar a sua vinda para uma escola de profetas.
A vinda para o Ginásio, realmente mudou a sua vida, tal como dissera aquele bom amigo que lhe dera, um dia, aquele maravilhoso presente!
Capítulo 4
Órfãs de pais vivos
Últimos anos da década de 40. A Segunda Guerra Mundial assolara o mundo por 6 anos. Embora as batalhas se houvessem travado em outro continente, seus efeitos danosos se faziam sentir por todo o nosso país. Houve dificuldades também para o Colégio Cruzeiro do Sul. Agora, Ginásio Adventista de Taquara. Com denodo e boa vontade, os problemas iam-se resolvendo. As aulas continuaram normalmente. Finda a guerra, as coisa foram-se ajeitando pouco a pouco. Certo dia, o diretor foi procurado por um senhor que ostentava em sua roupa as insígnias da gloriosa FEB ( Força Expedicionária Brasileira). Era um oficial brasileiro que estivera na Europa comandando um grupo de pracinhas do Brasil. Tal senhor estava bastante nervoso. Eram visíveis em seus gestos os traumas de guerra e suas palavras eram rápidas e pesadas.
O diretor atendeu gentilmente aquele senhor agitado. Depois de se acalmar um pouco, o soldado pôs-se a contar a sua história. Havia partido para a Europa logo que o Brasil declarara também guerra aos países do Eixo. Deixara, no Brasil, a esposa e duas filhas: uma com 12, outra com 10 anos.
Nos primeiros tempos, mandava notícias freqüentes à família e recebia, também, mensagens enviadas pela esposa e pelas filhas. Por força de batalhas, seu pelotão foi-se embrenhando Itália a dentro e mandar notícias tornou-se impossível. Foram dias e dias, pensando na família, desejando enviar ou receber notícias, sem que nada disto acontecesse. Passou fome, passou frio e foi ferido, já quase no final da guerra. Felizmente o ferimento não fora grave, mas ele precisou ficar hospitalizado durante algum tempo. Foi assim que ele não estava entre os primeiros pracinhas a serem repatriados. Imaginou que o Ministério da Guerra se encarregaria de avisar a família a respeito do acontecido.
Finalmente chegou o dia de seu retorno. Que alegria! Quanta ansiedade para reencontrar a esposa e as filhas. Como estariam? Certamente, as filhas já seria umas bonitas mocinhas. Chegando ao Rio de Janeiro, tomou a primeira condução que conseguiu. A pressa de chegar ao seu estado era muito grande.